segunda-feira

2-junho-2025 Ano 1

Grupos de teatro popular resistem na periferia de São Paulo

Por Alexandra Alexandrina, Gabriela Abbud, Guilherme Borini, Heitor Ribeiro e Julia Camargo 

Em meio a grandes produções internacionais e circuitos culturais consolidados, a sobrevivência das companhias de teatro popular é marcada por desafios e uma resistência cotidiana. Os grupos independentes seguem produzindo arte e impacto na periferia de São Paulo, apesar de todas as dificuldades. 

Negligenciados pelo poder público, milhares de cidadãos das periferias vivem às margens das benesses de uma metrópole. A falta de um olhar sensível faz com que eles se vejam sem esperança de um futuro otimista. Os grupos de teatro popular Pombas Urbanas e Estopô Balaio vêm para cuidar e perceber essas pessoas, valorizando suas identidades e a região.  

Mas os coletivos precisam garantir a continuidade de suas atividades a qualquer custo. Mais de seis meses sem receber apoio financeiro, com o deslocamento sendo um desafio e a incerteza de um teto, as companhias lutam para manter a comunidade amparada em meio à falta de infraestrutura e até aos desafios climáticos da zona leste de São Paulo.   

Com o teatro, as companhias promovem educação, autoconhecimento e cultura para as comunidades locais. Jovens são incentivados a integrarem as atividades, como forma de expandir as possibilidades de vida, não os prendendo a futuros impostos. A arte se torna uma ferramenta de transformação.  

Entrevistados com exclusividade pela reportagem da Agenzia, o Grupo Pombas Urbanas e o coletivo Estopô Balaio relembram suas origens e compartilham os desafios para manter a cultura na periferia. “Nós, artistas, somos as forças desarmadas da população. E é com a nossa arte que a gente vai empreender a nossa luta. E que essa luta é todo dia e a vida toda”, sintetiza Marcelo Palmares, do Grupo Pombas Urbanas.

Para entender a resistência e o impacto dessas companhias de teatro popular em seus territórios, é preciso conhecer suas trajetórias, seus desafios cotidianos e a potência de suas criações.“É muito poderoso trabalhar no sentido de dar materialidade para a cena, transformar essa angústia que a gente sentia em material artístico”, resume Ana Carolina Marinho, do Estopô Balaio. 

Grupo Pombas Urbanas: transformação social na periferia 

O Pombas Urbanas atua na zona leste de São Paulo, desde 2004, mas existe – e resiste – desde 1989. O grupo nasceu em São Miguel Paulista por iniciativa do ator e diretor peruano Lino Rojas. Após 15 anos, conseguiram se estabelecer em um galpão abandonado na vizinha Cidade Tiradentes. 

Entrada do Centro Cultural Arte em Construção com bancos, materiais para o espetáculo e, logo atrás, uma cortina vermelha que dá entrada para o Teatro Ventre de Lona
Espaço para apresentações do Centro Cultural Arte Em Construção
Foto: Gabriela Abbud/Agenzia 

O galpão, que antes funcionava como supermercado, foi encontrado em ruínas pelo grupo. Mas, com força coletiva, transformaram o espaço na atual sede do Instituto Pombas Urbanas: o Centro Cultural Arte Em Construção. Hoje, o local conta com diversos espaços comunitários e culturais, como salas de aprendizagem, o “Teatro Ventre de Lona”, a “Biblioteca Comunitária Milton José Assumpção”, entre outros. “Ter uma sede é como ter uma casa. E se a casa está garantida, lá na Constituição […] um grupo de teatro também tem o direito a ter uma casa. E essa casa tem uma representatividade muito grande, porque ela é transformadora, ela muda o entorno de onde ela está”, diz o ator e cofundador do grupo, Marcelo Palmares.

Com o foco de garantir cultura e promover o entendimento pessoal e coletivo, o grupo leva diversas iniciativas sociais e teatrais para a comunidade da Cidade Tiradentes. “O nosso foco era que eles se conhecessem primeiro, conhecessem a sua própria história e se tornassem donos disso”, diz Ricardo Big, ator e produtor dos espetáculos. “E a partir disso elas decidem o que elas querem fazer, porque essa experiência vai servir para qualquer ramo de atividade que a pessoa escolher.”

Ricardo, tendo que ajudar a cuidar dos irmãos, pensava que, já perto dos 30 anos, o sonho de ser ator não era mais possível e Marcelo Palmares, um homem negro que precisou ajudar nas contas de casa, mas nunca abandonou o desejo de fazer teatro, compartilharam o momento mais feliz dentro do Pombas Urbanas. Para Ricardo, foi quando entrou pela primeira vez em uma aula de teatro: “Quem é ator, atriz, artista de palco, sempre tem essa emoção, né? De pisar no palco.” Já para Marcelo: “Foi o momento que eu falei ‘Isso é teatro?’ Eu não posso sair de algo que estou gostando tanto, que me sinta identificado com estar em cena. Poder dizer o que eu sinto, enquanto ator, enquanto pessoa, enquanto cidadão”. 

Teatro com e para a comunidade

O Instituto Pombas Urbanas tem um caráter comunitário na sua forma de fazer teatro, atuando em prol da comunidade e a incluindo nos trabalhos do grupo. Ao chegarem na Cidade Tiradentes, Marcelo conta que os moradores perguntavam se o projeto seria permanente — muitos já haviam se frustrado com ações culturais passageiras no bairro. Marcelo respondia que o Pombas Urbanas era um projeto contínuo. Ele também relembra as palavras de Lino Rojas sobre o galpão abandonado: “Esse lugar é um chamado. Quando a gente começar a mexer nos nossos corpos, a fazer os nossos treinamentos teatrais aqui, as personagens vão aparecer. E é com esses personagens, da comunidade, que nós vamos fazer o nosso teatro”. 

Hoje, o Pombas Urbanas trabalha com pessoas de todas as idades, de crianças a idosos, nas oficinas de aprendizagem e projetos sociais. A proposta se mantém: levar cultura e autoconhecimento à periferia.

“Quando você sabe quem é não se perde no caminho”, afirma Marcelo Palmares. 

Manter o sonho em pé: dificuldades que desafiam a cena 

A companhia de Cidade Tiradentes lida com a escassez de recursos e os desafios de atrair público, enfrentando especialmente a dificuldade de manter o Centro Cultural Arte Em Construção aberto com orçamento limitado. O grupo não consegue fazer parte de nenhum programa de repasse financeiro da prefeitura. Relembrando de um dos momentos mais difíceis para o coletivo Ricardo diz: “A gente já passou seis meses sem receber um recurso para nada, então a gente batalhava para pagar as contas, pagar o mínimo da infraestrutura, mas nós mesmos sempre como voluntários. Eu fiquei aqui pelo grupo quase um ano, uma vez, sem receber nada”. 

Imagens do supermercado que antes era o Centro Cultural Arte Em Construção na parte de cima, no meio Lino Rojas com a bandeira do Grupo Pombas Urbanas logo atrás e, embaixo, duas imagens do supermercado abandonado
Centro Cultural Arte Em Construção antigamente e Lino Rojas
Foto: Gabriela Abbud/Agenzia 

Apesar de ser um teatro popular e um espaço cultural para a comunidade, o grupo enfrenta dificuldades. “O maior desafio é sensibilizar o público que esse espaço é dele também, porque tem muita gente que não entra, porque não está habituado a frequentar um espaço cultural, então acha que tem que pagar”, diz Marcelo Palmares. “A gente quer que cada vez mais as pessoas entendam que não é elitizado, é para quem quiser chegar e assistir”, afirma Ricardo Big. O grupo também enfrenta dificuldades para levar o público até o galpão, mesmo com uma população numerosa na região e parcerias com escolas da comunidade. Falta apoio de secretarias municipais que viabilizem esse acesso e até mesmo a vontade das pessoas de assistirem às produções. 

A única segurança que o grupo tem é o contrato de mais 20 anos com a Companhia de Habitação (Cohab), segundo Ricardo: “Isso é uma garantia, porque a maioria dos grupos que ocupam espaços não têm esse tipo de garantia, tranquilamente a prefeitura ou o governo, se for dono daquele espaço […] decidem acabar com aquele espaço, eles acabam”.  

Estopô Balaio: cultura na periferia 

O coletivo Estopô Balaio surgiu no Jardim Romano, zona leste de São Paulo, em 2011. O objetivo era de acompanhar as atividades artísticas que ocorriam no Centro Educacional Unificado (CEU) da região, mas, ao longo dos anos, passou a ter sua sede em uma casa no bairro, que realiza ações culturais e sociais independentes. 

[em ordem] Ana Carolina Marinho, Dandara Azevedo e Wemerson Nunes em frente à Casa Balaio, no Teatro Garagem. Na esquerda, um cartaz do espetáculo “Na roça do tomatá, uma viagem esquecida”. Na direita, cartazes da apresentação do Xadai e da batalha de rima “meu rumo é a rima”
Ana Carolina, Dandara Azevedo e Wemerson Nunes em frente à Casa Balaio
Foto: Gabriela Abbud/Agenzia 

Quatro integrantes ativas do coletivo relataram à Agenzia as origens e o funcionamento do Estopô Balaio: Ana Carolina e Keli Andrade, fundadoras do coletivo; Dandara Azevedo, multiartista, produtora e pesquisadora; e Mara Carvalho, artista visual e figurinista. 

 Estantes com muitos livros e jogos na Casa Balaio, funciona como biblioteca
Biblioteca
Foto: Gabriela Abbud/Agenzia 

A Casa Balaio, sede do teatro popular, é alugada há 13 anos e passou por diversas alterações para suprir as necessidades do coletivo. O espaço conta com biblioteca, copa, camarim, sala de balé e a garagem, que funciona como espaço principal para espetáculos e oficinas de dança, teatro e outras atividades. Para Ana Carolina Marinho, as atividades do Estopô Balaio desempenham um papel crucial no desenvolvimento das crianças.  

Para o coletivo, o objetivo vai além do teatro popular, buscando fazer do espaço um polo de vivências e trocas, com caráter pedagógico. O grupo oferece para a comunidade acesso à cultura e a diversas oportunidades, especialmente para os jovens, com aulas de formação contínua. Além de envolver as crianças nas produções teatrais, com uma ajuda simbólica, incentivando-as na possibilidade de seguir com a arte. 

Com o conceito de arte em comunidade e para a comunidade, o Estopô Balaio é um teatro popular feito em diálogo constante com a população. “Na comunidade, literalmente, caminhamos pelas ruas. A gente tem muitos espetáculos itinerantes […]”, afirma Ana Carolina Marinho. O coletivo trabalha com materiais históricos e biográficos para criar seus espetáculos, destacando a importância do protagonismo e novos olhares sobre a história dos moradores e do próprio bairro. 

Raízes: cultura e identidade

Com foco na ancestralidade e na construção da identidade, o Coletivo utiliza das raízes indígenas do bairro para promover o autoconhecimento sobre os ancestrais da comunidade.  

Ana Carolina Marinho, nascida no Rio Grande do Norte, migrou para São Paulo em 2011, mesmo ano em que fundou o coletivo. Recém-chegada, sentiu as diferenças e o estranhamento das pessoas em relação a ela. Mas na iniciativa de criar o Estopô Balaio, encontrou no Jardim Romano outros migrantes. Foi um espanto, mas “ao mesmo tempo, trouxe um afago para nós que estávamos acabando de chegar”. Dandara Azevedo, que também migrou para São Paulo, é nascida em São Luís, no Maranhão, e entrou no coletivo em 2022. Para ela estar no Estopô Balaio foi uma reconexão com vivências maranhenses e “uma possibilidade de fazer teatro, de estar nas artes e conversar um pouco com as minhas experiências de dança.” 

Com o tempo, o Estopô Balaio passou a questionar a forma como o grupo era visto e como se viam. A identidade nordestina começou a ser analisada de forma mais reflexiva. A noção de um Nordeste único, com uma só cultura, sotaque ou culinária, revelou-se uma invenção construída no Sudeste, que muitas vezes reduz e apaga os povos que pretende representar. Mara Carvalho, integrante do coletivo e mulher indígena, reconhece a importância de oferecer ferramentas para que cada pessoa possa descobrir quem é: “Como que eu vou me autodeclarar ou entender isso ou aquilo se eu não sei a história da minha vida?”

A partir disso, muitos integrantes redescobriram suas raízes indígenas, compreendendo que, antes mesmo de serem chamados de nordestinos, já carregavam uma história originária.

“Nordestino é uma coisa que impõem sobre nós. Indígena é algo que a gente já nasce”, diz Ana. Com isso, o bairro também começou a se enxergar de outra forma. 

Desafiando estigmas

O grupo desafia a lógica dominante do teatro na região central da cidade, e enfrenta o desafio cotidiano de fazer arte em um território que nem sempre está habituado ao teatro. Quando iniciaram suas atividades, o coletivo enfrentou o estranhamento dos moradores da região. 

Teatro Garagem na Casa Balaio. Ao fundo uma cortina, com uma árvore e plantas em frente
Teatro Garagem, na Casa Balaio
Foto: Gabriela Abbud/Agenzia

Levar pessoas distantes para conhecer o Estopô Balaio também foi um desafio, por conta de estigmas e preconceitos. De acordo com Mara Carvalho: “são dois mundos que se chocam toda vez que a galera vem”. O coletivo criou uma solução simples, mas eficiente: levar o teatro até as pessoas, e as pessoas até o teatro. Como forma de descentralizar a cultura e levar as pessoas até lá, Ana Carolina contou que começavam os espetáculos no Brás, na zona leste, mas já próxima da região central de São Paulo. “A gente vai trazendo as pessoas de trem, junto […] e, de repente, elas estão aqui, elas vivem a experiência do bairro e elas passam a desejar voltar para continuar vendo o que é isso.” 

Fazer teatro na periferia, para o coletivo, é provocar, transformar, e mostrar que vida e arte já existem ali, só é preciso ocupar e reconhecer.  Keli Andrade destaca a importância do reconhecimento do teatro em áreas periféricas:

“Tem muita galera que assiste teatro numa caixa, que nunca viu um formato como é o nosso. As pessoas vieram até aqui e também é muito bom. A pessoa sai emocionada e se questionando.” 

Manter um grupo de teatro independente na periferia exige mais do que criatividade, exige resistência. O Estopô Balaio sobrevive por meio de editais públicos, mas nem sempre é contemplado e, quando o financiamento não vem, o grupo encara um cenário de incerteza. “A gente tem uma casa, uma estrutura, um corpo de trabalhadores das artes. Como continuar sem verba?”, questiona Ana Carolina. Nesses períodos, o coletivo chega a tirar dinheiro do próprio bolso para manter o espaço vivo. Já houve momentos em que ficaram até sete meses sem apoio, mas, com esforço coletivo, hoje tentam limitar essas fases a dois meses.  

d09

O grupo D09 é composto por Alexandra Alexandrina, Gabriela Abbud, Guilherme Borini, Heitor Ribeiro e Julia Camargo.

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