Entenda como as produções audiovisuais de true crime têm ganhado o coração do público, afetando o ponto de vista social sobre serial killers.
Por Ana Rita Fernandes, Larissa Bonifácio, Larissa Olm, Malu Palombello, Mariana da Costa e Sophia Delcor.
Eles matam, chocam e, ainda assim, fascinam. Serial killers sempre foram capazes de dar medo ou encantar. Nos últimos anos, com o boom de documentários de crimes reais do gênero true crime, esses passaram a ser vistos como personagens que conquistam o público mundialmente. Séries, filmes, documentários e podcasts não só contam casos de crimes reais, mas tem a capacidade de moldar a percepção social e coletiva acerca de criminosos, suas vítimas e até a natureza da violência.
Em 2022, Rita Isbell, irmã de uma das vítimas do serial killer Jeffrey Dahmer, assistiu ao lançamento da série Dahmer: Um Canibal Americano, na Netflix. Em uma das cenas mais impactantes, ela viu sua própria imagem representada por uma atriz: mesma roupa, mesmo cabelo, mesma dor. A produção, sem consultar a família, reviveu memórias traumáticas.
Parecia que eu estava revivendo tudo de novo”, contou Rita ao Insider.
Pouco tempo depois, outra série do mesmo formato, Monstros: Irmãos Menendez: Assassinos dos Pais, reacendeu um caso dos anos 1990, gerando mobilizações reais em defesa dos irmãos condenados, impulsionadas por fãs nas redes sociais. Hashtags como #JusticeForErikAndLyle viralizaram no TikTok e no X, levantando-se até a possibilidade de uma revisão judicial.
Casos como esses evidenciam o poder que o gênero true crime (do inglês: crime real) alcançou nos últimos anos. Além de moldar a percepção do público sobre criminosos e vítimas, essas produções afetam diretamente a vida dos envolvidos, muitas vezes, sem seu consentimento.
Para entender melhor esse fenômeno, ouvimos quatro especialistas: Bruna Roberta, host do podcast 1001 Crimes; Maurício Eça, diretor da trilogia A Menina que Matou os Pais e do filme Maníaco do Parque; Lucas Tinoco, crítico de cinema; e o criminólogo Danilo Cymrot. Suas perspectivas ajudam a traçar um panorama mais profundo do sucesso, impacto e das polêmicas por trás desse tipo de narrativa.
De onde surge esse interesse? Quem está por trás dos espectadores essas produções?
Ao longo dos anos, percebe-se que os assassinos, em série ou não, têm ganhado atenção especial de produtores audiovisuais ao redor do mundo e, consequentemente, de um público fascinado pelo gênero true crime. Segundo a empresa americana Parrot Analytics, especializada em rastreamento de mídia global, o consumo de documentários aumentou 63% entre 2018 e 2021. Entre eles, o true crime se destaca como o subgênero de crescimento mais acelerado. Ele não trata apenas de retratar casos criminais, mas combina elementos de reportagem policial com estratégias narrativas da ficção, a fim de cativar a atenção dos espectadores.
Dados apontam que essas táticas têm funcionado. A série Monstros: Irmãos Menendez: Assassinos dos pais teve 12,3 milhões de visualizações apenas no fim de semana de estreia. Já Dahmer: Um Canibal Americano ultrapassou 21,8 milhões de visualizações no mesmo período.

Está claro que a sociedade demonstra grande interesse por esses casos, seja pelos detalhes mórbidos, seja pelo desejo de entender a motivação e o passado dos assassinos. Em alguns casos, o público busca compreender a mente criminosa ou até projetar nela seus próprios impulsos inconscientes. O assassino se torna uma espécie de bode expiatório, um ser capaz de realizar as vontades imorais do espectador, gerando uma atração ambígua pela morte e pela violência, tudo isso em um ambiente seguro: a tela.

Esse crescimento está também conectado ao alcance de outras categorias de conteúdo que acabam atraindo o público para o universo do true crime. Bruna Roberta, host do podcast 1001 Crimes, relata: “Acontece isso de atrair pessoas que não estavam inseridas nesse mundo, de consumir mais coisas de true crime, de terror também…, Mas o público geral é assim: a pessoa já conhece o caso por ter assistido tal coisa, mas, mesmo assim, ela escuta o episódio.”
Segundo ela, essa atração por histórias reais de violência vem da tentativa de compreender o incompreensível.
A gente sempre teve essa curiosidade de saber até que ponto a mente humana pode chegar. Você consome esse tipo de conteúdo para tentar entender isso”, afirma o criminólogo Rubens Correia Jr.
Em entrevista ao Aventuras na História, corrobora: “Crimes inexplicáveis desafiam nossa concepção de certo e errado e nos obrigam a confrontar nossos próprios sentimentos inconscientes.”
Esse apelo psicológico é também estratégico. O gênero mistura elementos jornalísticos com a estética da ficção: suspense, dramatização e conexão emocional. Como resultado, muitos espectadores não apenas assistem, mas se envolvem profundamente, às vezes, de forma problemática.
Mulheres dominam a audiência do true crime
Pesquisas do Globo.com e Psychology Today indicam que 75% do público de true crime é feminino. Três fatores explicam esse fenômeno: a apresentação de táticas de defesa, a abordagem psicológica dos crimes e o fato de a maioria das vítimas de serial killers serem mulheres, o que gera um interesse preventivo, como aponta o estudo de Amanda Vicary e Chris Fraley, de 2010.
De acordo com as psicólogas Bruna Dutra, Gabriella Pessoa e a criminalista Ilana Casoy, em entrevista à Marie Claire, as mulheres se identificam com as vítimas e consomem esse conteúdo como forma de se proteger e aprimorar suas habilidades de alerta. Além disso, afirmam que o gênero oferece uma maneira de canalizar instintos primitivos sem prejudicar a si mesmas nem aos outros.
Esse padrão é perceptível também na prática. Bruna Roberta relata:
A gente tem um público majoritariamente feminino. Dá pra perceber que muita mulher escuta e consome true crime por medo de ‘eu sou a próxima?’, ‘meu namorado seria capaz de fazer isso?’. Existe essa curiosidade.”
A empresária Tatiana Fanti, entrevistada pela Revista Gente, diz que se interessa por esse tipo de conteúdo porque deseja entender a mente dos assassinos. “No começo, eu pensava: ‘Meu Deus, por que ouvir isso?’, mas percebi que meu objetivo era entender como a mente humana funciona.” Já a contadora Lilian Roncoleta relata: “Comecei a ouvir pelo YouTube, e foi um caminho sem volta.”
Casos com foco psicológico, como os de Ted Bundy e Jeffrey Dahmer, são especialmente populares entre mulheres, reforçando o padrão de busca por compreensão e estratégias de sobrevivência.

Sensacionalismo e responsabilidade: lucro acima da dor?
Parte dessas histórias se torna vítima do sensacionalismo. Muitos produtores e diretores priorizam a audiência e o lucro, ignorando o impacto sobre os familiares das vítimas, e até sobre os parentes dos assassinos.
Rita Isbell declarou ao Insider: “É triste que estejam apenas ganhando dinheiro com essa tragédia.” Ela se sentiu desconfortável ao ver seu irmão retratado com fidelidade na série da Netflix, sem qualquer contato prévio da produção com sua família.
Em entrevista, o diretor Maurício Eça defende uma abordagem ética: “Temos que ter o máximo respeito pela história, pelos envolvidos, por quem não está mais aqui e por quem ainda está. Não sendo sensacionalistas, e sim relatando os fatos com base no processo judicial, com muito estudo e sem glamourizar os assassinos.” Esse cuidado é compartilhado por Bruna, do 1001 Crimes: “No caso de um assassino em série, você não precisa saber todos os detalhes do que a vítima passou para sentir empatia. A gente tenta evitar descrições gráficas justamente para proteger a vítima.”

Já o crítico Lucas Tinoco traz uma visão mais crítica:
O que antes eram mortes superficiais nos anos 80, agora são true crimes que banalizam a morte e ignoram o peso social da realidade. A morte virou espetáculo.”
Quando a ficção altera o rumo real dos casos…
O caso Menendez, amplamente divulgado nos anos 1990, voltou ao centro das atenções após o lançamento da série Monstros: Irmãos Menendez: Assassinos dos Pais. Quase 40 anos após a condenação dos irmãos Lyle e Erik à prisão perpétua, uma nova audiência foi marcada, impulsionada por campanhas nas redes sociais. Hashtags como #MenendezLegacy e vídeos virais reacenderam o debate sobre o julgamento dos irmãos.
O diretor Maurício Eça comenta:
Se fizermos filmes como esses para que não se repitam e para gerar reflexão até sobre nossas leis, já vale de alguma coisa.”

Fonte: X / @sagittababe, 26/04/2025.

O criminólogo Danilo Cymrot reforça: “A série sobre Daniella Perez impactou a imagem pública do assassino Guilherme de Pádua. As pessoas começaram a vê-lo de forma diferente. Existe um poder muito grande em moldar narrativas”.
Como o público reage?
Embora crimes reais não sejam novidade, seu crescimento nas plataformas de streaming divide opiniões. Enquanto alguns veem o aprofundamento narrativo como positivo, outros alertam para o risco de idolatria aos criminosos. Há fanpages, vídeos que romantizam os serial killers e até tentativas de contato com os assassinos.
Nós recebemos críticas de pessoas que queriam ver mais sangue, mais violência”, revela Eça. “Não é nossa intenção. Queremos mostrar o absurdo do crime, não reproduzir o horror.”
Tinoco argumenta que a responsabilidade é compartilhada: “A culpa não é só do público que consome sem questionar, mas dos diretores e showrunners, que criam a experiência emocional de forma calculada. Se o público sente algo, isso vem da construção técnica da obra.”
Muitos consideram negativo dar visibilidade a crimes antigos, temendo que isso gere fama aos autores dos crimes. Foi o que ocorreu com A Menina que Matou os Pais, cuja estreia levantou suspeitas (infundadas) de que Suzane von Richthofen lucraria com o filme.



Afinal, qual o dilema do true crime?
Streaming, cinema, documentário, série, ficção: cada formato molda a percepção de maneira distinta. Segundo Cymrot: “A imagem tem um poder muito forte. Quando você assiste, vê os personagens, a trilha sonora, a atuação. Isso pode até fazer com que você torça pelo criminoso.”

O gênero true crime revela mais do que apenas os crimes brutalmente cometidos e as mentes perturbadas dos assassinos, também explicita como a sociedade consome esse delito e o transforma em mercadoria no universo do entretenimento. A banalização de homicidas, que passam a ser tratados como meros “personagens” ficcionais, é outro efeito preocupante dessa tendência.
Ao mesmo tempo que pode informar e provocar reflexões e pensamentos nos telespectadores, pode também correr o risco de romantizar a violência e desumanizar as vítimas em nome da audiência ou lucro. Diante disso, o questionamento é claro: como equilibrar e manter o interesse público com o respeito aos envolvidos? Como consumir esse conteúdo conscientemente sem alimentar o sensacionalismo do horror?
Entre o lucro e o respeito à dor alheia, os criadores dessas narrativas percorrem um caminho delicado, em que suas escolhas estéticas e editoriais têm o potencial de moldar percepções sociais, reabrir feridas emocionais e até impactar desdobramentos legais e judiciários. Tendo isso em vista, o maior desafio está em equilibrar o interesse do público com a responsabilidade ética de não transformar tragédias reais em espetáculo.
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