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14-junho-2025 Ano 1

Serial killers na mídia: entre o fascínio e a banalização

Entenda como as produções audiovisuais de true crime têm ganhado o coração do público, afetando o ponto de vista social sobre serial killers.

Por Ana Rita Fernandes, Larissa Bonifácio, Larissa Olm, Malu Palombello,  Mariana da Costa e Sophia Delcor. 

Eles matam, chocam e, ainda assim, fascinam. Serial killers sempre foram capazes de dar medo ou encantar. Nos últimos anos, com o boom de documentários de crimes reais do gênero true crime, esses passaram a ser vistos como personagens que conquistam o público mundialmente. Séries, filmes, documentários e podcasts não só contam casos de crimes reais, mas tem a capacidade de moldar a percepção social e coletiva acerca de criminosos, suas vítimas e até a natureza da violência.  

Em 2022, Rita Isbell, irmã de uma das vítimas do serial killer Jeffrey Dahmer, assistiu ao lançamento da série Dahmer: Um Canibal Americano, na Netflix. Em uma das cenas mais impactantes, ela viu sua própria imagem representada por uma atriz: mesma roupa, mesmo cabelo, mesma dor. A produção, sem consultar a família, reviveu memórias traumáticas.

Parecia que eu estava revivendo tudo de novo”, contou Rita ao Insider.

Pouco tempo depois, outra série do mesmo formato, Monstros: Irmãos Menendez: Assassinos dos Pais, reacendeu um caso dos anos 1990, gerando mobilizações reais em defesa dos irmãos condenados, impulsionadas por fãs nas redes sociais. Hashtags como #JusticeForErikAndLyle viralizaram no TikTok e no X, levantando-se até a possibilidade de uma revisão judicial. 

Casos como esses evidenciam o poder que o gênero true crime (do inglês: crime real) alcançou nos últimos anos. Além de moldar a percepção do público sobre criminosos e vítimas, essas produções afetam diretamente a vida dos envolvidos, muitas vezes, sem seu consentimento.

Para entender melhor esse fenômeno, ouvimos quatro especialistas: Bruna Roberta, host do podcast 1001 Crimes; Maurício Eça, diretor da trilogia A Menina que Matou os Pais e do filme Maníaco do Parque; Lucas Tinoco, crítico de cinema; e o criminólogo Danilo Cymrot. Suas perspectivas ajudam a traçar um panorama mais profundo do sucesso, impacto e das polêmicas por trás desse tipo de narrativa.

De onde surge esse interesse? Quem está por trás dos espectadores essas produções? 

Ao longo dos anos, percebe-se que os assassinos, em série ou não, têm ganhado atenção especial de produtores audiovisuais ao redor do mundo e, consequentemente, de um público fascinado pelo gênero true crime. Segundo a empresa americana Parrot Analytics, especializada em rastreamento de mídia global, o consumo de documentários aumentou 63% entre 2018 e 2021. Entre eles, o true crime se destaca como o subgênero de crescimento mais acelerado. Ele não trata apenas de retratar casos criminais, mas combina elementos de reportagem policial com estratégias narrativas da ficção, a fim de cativar a atenção dos espectadores. 

Dados apontam que essas táticas têm funcionado. A série Monstros: Irmãos Menendez: Assassinos dos pais teve 12,3 milhões de visualizações apenas no fim de semana de estreia. Já Dahmer: Um Canibal Americano ultrapassou 21,8 milhões de visualizações no mesmo período. 

Capa de divulgação da série Monstros: Irmãos Menendez, onde Lyle, interpretado por Nicholas Alexander Chavez e Erik, interpretador por Cooper Koch, estão abraçados seminus e sérios, o fundo é preto e possui uma iluminação azulada. O título da série está escrito em azul abaixo da palavra “Netflix” centralizado na parte baixa da foto, a palavra “Monstros” possui um destaque, pois está escrito em letras maiores do que o resto do título.
Capa da série “Monstros: Irmãos Menendez: Assassinos dos Pais”. Fonte: Reprodução/ Netflix

Está claro que a sociedade demonstra grande interesse por esses casos, seja pelos detalhes mórbidos, seja pelo desejo de entender a motivação e o passado dos assassinos. Em alguns casos, o público busca compreender a mente criminosa ou até projetar nela seus próprios impulsos inconscientes. O assassino se torna uma espécie de bode expiatório, um ser capaz de realizar as vontades imorais do espectador, gerando uma atração ambígua pela morte e pela violência, tudo isso em um ambiente seguro: a tela. 

 Capa do podcast 1001 Crimes, fundo rosa com textura de azulejo e marcas roxas que simulam respingos de sangue, o título do podcast está escrito ao centro em letras maiúsculas brancas.
Capa do Podcast 1001 Crimes, disponível no Spotify. Fonte: Reprodução / Spotify

Esse crescimento está também conectado ao alcance de outras categorias de conteúdo que acabam atraindo o público para o universo do true crime. Bruna Roberta, host do podcast 1001 Crimes, relata: “Acontece isso de atrair pessoas que não estavam inseridas nesse mundo, de consumir mais coisas de true crime, de terror também…, Mas o público geral é assim: a pessoa já conhece o caso por ter assistido tal coisa, mas, mesmo assim, ela escuta o episódio.” 

Segundo ela, essa atração por histórias reais de violência vem da tentativa de compreender o incompreensível.

A gente sempre teve essa curiosidade de saber até que ponto a mente humana pode chegar. Você consome esse tipo de conteúdo para tentar entender isso”, afirma o criminólogo Rubens Correia Jr.

Em entrevista ao Aventuras na História, corrobora: “Crimes inexplicáveis desafiam nossa concepção de certo e errado e nos obrigam a confrontar nossos próprios sentimentos inconscientes.” 

Esse apelo psicológico é também estratégico. O gênero mistura elementos jornalísticos com a estética da ficção: suspense, dramatização e conexão emocional. Como resultado, muitos espectadores não apenas assistem, mas se envolvem profundamente, às vezes, de forma problemática. 

Mulheres dominam a audiência do true crime 

Pesquisas do Globo.com e Psychology Today indicam que 75% do público de true crime é feminino. Três fatores explicam esse fenômeno: a apresentação de táticas de defesa, a abordagem psicológica dos crimes e o fato de a maioria das vítimas de serial killers serem mulheres, o que gera um interesse preventivo, como aponta o estudo de Amanda Vicary e Chris Fraley, de 2010. 

De acordo com as psicólogas Bruna Dutra, Gabriella Pessoa e a criminalista Ilana Casoy, em entrevista à Marie Claire, as mulheres se identificam com as vítimas e consomem esse conteúdo como forma de se proteger e aprimorar suas habilidades de alerta. Além disso, afirmam que o gênero oferece uma maneira de canalizar instintos primitivos sem prejudicar a si mesmas nem aos outros. 

Esse padrão é perceptível também na prática. Bruna Roberta relata:

A gente tem um público majoritariamente feminino. Dá pra perceber que muita mulher escuta e consome true crime por medo de ‘eu sou a próxima?’, ‘meu namorado seria capaz de fazer isso?’. Existe essa curiosidade.” 

A empresária Tatiana Fanti, entrevistada pela Revista Gente, diz que se interessa por esse tipo de conteúdo porque deseja entender a mente dos assassinos. “No começo, eu pensava: ‘Meu Deus, por que ouvir isso?’, mas percebi que meu objetivo era entender como a mente humana funciona.” Já a contadora Lilian Roncoleta relata: “Comecei a ouvir pelo YouTube, e foi um caminho sem volta.” 

Casos com foco psicológico, como os de Ted Bundy e Jeffrey Dahmer, são especialmente populares entre mulheres, reforçando o padrão de busca por compreensão e estratégias de sobrevivência. 

Capa de divulgação da série Dahmer Um Canibal Americano. Monstro: A História de Jeffrey Dahmer, com o ator Evan Peters, que interpreta Jeffrey Dahmer, no centro da foto, com um cabelo curto descolorido, barba e óculos, há também uma iluminação amarelada, em um fundo preto. O título da série está em amarelo, centralizado na parte baixa da foto com destaque para o nome Dahmer, pois está escrito em letras maiores do que o restante do título.
Capa da série “Dahmer: Um Canibal Americano”. Fonte: Reprodução/ Netflix.

Sensacionalismo e responsabilidade: lucro acima da dor? 

Parte dessas histórias se torna vítima do sensacionalismo. Muitos produtores e diretores priorizam a audiência e o lucro, ignorando o impacto sobre os familiares das vítimas, e até sobre os parentes dos assassinos. 

Rita Isbell declarou ao Insider: “É triste que estejam apenas ganhando dinheiro com essa tragédia.” Ela se sentiu desconfortável ao ver seu irmão retratado com fidelidade na série da Netflix, sem qualquer contato prévio da produção com sua família. 

Em entrevista, o diretor Maurício Eça defende uma abordagem ética: “Temos que ter o máximo respeito pela história, pelos envolvidos, por quem não está mais aqui e por quem ainda está. Não sendo sensacionalistas, e sim relatando os fatos com base no processo judicial, com muito estudo e sem glamourizar os assassinos.” Esse cuidado é compartilhado por Bruna, do 1001 Crimes: “No caso de um assassino em série, você não precisa saber todos os detalhes do que a vítima passou para sentir empatia. A gente tenta evitar descrições gráficas justamente para proteger a vítima.” 

Fotografia dos bastidores de um estúdio na Faculdade Cásper Líbero, com fundo alaranjado, proporcionado pela iluminação intensa que vem de um refletor posicionado no chão. Maurício Eça, diretor de cinema, está sentado em uma poltrona no centro, usando roupas de moletom.
Print da gravação da entrevista com Maurício Eça, diretor de filmes sobre true crime.

Já o crítico Lucas Tinoco traz uma visão mais crítica:

O que antes eram mortes superficiais nos anos 80, agora são true crimes que banalizam a morte e ignoram o peso social da realidade. A morte virou espetáculo.” 

Quando a ficção altera o rumo real dos casos… 

O caso Menendez, amplamente divulgado nos anos 1990, voltou ao centro das atenções após o lançamento da série Monstros: Irmãos Menendez: Assassinos dos Pais. Quase 40 anos após a condenação dos irmãos Lyle e Erik à prisão perpétua, uma nova audiência foi marcada, impulsionada por campanhas nas redes sociais. Hashtags como #MenendezLegacy e vídeos virais reacenderam o debate sobre o julgamento dos irmãos. 

O diretor Maurício Eça comenta:

Se fizermos filmes como esses para que não se repitam e para gerar reflexão até sobre nossas leis, já vale de alguma coisa.” 

 Print de um tweet que relata como os irmãos Menendez estão arrependidos de seus crimes e questionando diretamente se o leitor nunca se arrependeu de nada “Quem é você agora? Você mudou e amadureceu com os anos? Você já olhou pra trás e se arrependeu dos erros que cometeu quando ainda estava aprendendo sobre eles? Você teve a consciência dos seus atos e desejou fazer diferente? Lyle e Erik Menendez, sim. #JusticeForErikAndLyle”. Abaixo há 5 fotos, a primeira é dos irmão na época so assassinato, um ao lado do outro e as outras quatro são fotos atuais, duas dos irmãos juntos na prisão e as outras duas individuais, Lyle careca e Erik com cabelos grisalhos. Há duas setas apontando para as fotos, uma amarela no canto superior direito e uma verde no canto inferior esquerdo. Publicado por @sagittabe, 26/04/2025.
Tweet da #JusticeForErikAndLyle, que exemplifica o fanatismo pelos irmãos Menendez e a ideia defendida de que esses deveriam ser soltos após 35 anos de pena cumprida. 
Fonte: X / @sagittababe, 26/04/2025.
Print de um tweet da conta @menendez50, com nome de “Menendez Legacy | Fighting for Justice”, com o seguinte texto: “5 dias. (seguido por um emoji de coração na cor ciano e uma balança do direito) Dois garotos. Uma vida inteira em silêncio. Mas o silêncio não significa culpa, mas sim sobrevivência. Erik and Lyle Menendez merecem justiça. E em 5 dias, a discussão chega a uma chave para mudança. (seguindo por um emoji de coração ciano e #MenendezLegacy e #JusticeForErikAndLyle). O tweet conta com uma foto em preto e branco atual de Lyle Menendez, usando uma regata enquanto caminha. Sobreposta a ela na parte superior da foto tem-se o texto “Menendez Legacy” em letras maiúsculas brancas, enquanto na parte inferior, o texto é; “5 dias até a suspeição / audiência da CRA” fazendo referência ao Centro de Referência de Assistência Social, instituição americana. O número 5 está na cor ciana e sobre ele, ao centro do número, aparece a palavra “Dias” em letras cursivas brancas e abaixo disso o texto: “até a suspeição / audiência da CRA”, aparece em letras brancas maiúsculas.
Tweet da #JusticeForErikAndLyle, que apresenta uma contagem regressiva até o dia (09/05/2025) em que os irmãos Menendez irão voltar ao tribunal para uma audiência que pode influenciar fortemente a reavaliação da sentença, demonstrando assim o apoio dos “fãs”. Fonte: X / @menendez50, 04/05/2025

O criminólogo Danilo Cymrot reforça: “A série sobre Daniella Perez impactou a imagem pública do assassino Guilherme de Pádua. As pessoas começaram a vê-lo de forma diferente. Existe um poder muito grande em moldar narrativas”.

Como o público reage? 

Embora crimes reais não sejam novidade, seu crescimento nas plataformas de streaming divide opiniões. Enquanto alguns veem o aprofundamento narrativo como positivo, outros alertam para o risco de idolatria aos criminosos. Há fanpages, vídeos que romantizam os serial killers e até tentativas de contato com os assassinos. 

Nós recebemos críticas de pessoas que queriam ver mais sangue, mais violência”, revela Eça. “Não é nossa intenção. Queremos mostrar o absurdo do crime, não reproduzir o horror.” 

Tinoco argumenta que a responsabilidade é compartilhada: “A culpa não é só do público que consome sem questionar, mas dos diretores e showrunners, que criam a experiência emocional de forma calculada. Se o público sente algo, isso vem da construção técnica da obra.” 

Muitos consideram negativo dar visibilidade a crimes antigos, temendo que isso gere fama aos autores dos crimes. Foi o que ocorreu com A Menina que Matou os Pais, cuja estreia levantou suspeitas (infundadas) de que Suzane von Richthofen lucraria com o filme. 

Capa do filme “A Menina que matou os pais”. Centralizado está o ator Leonardo Bittencourt, ator que representa Daniel Cravinhos, atrás dele está a atriz Carla Diaz, que interpreta Suzane Von Richthofen na trama. Os dois estão posicionados à frente de um fundo escuro. O título do filme está escrito em letras garrafais pretas, posicionado à frente dos dois atores.
Capa do filme da trilogia “A menina que matou os pais”, obra do gênero true crime todos produzidos pelo diretor entrevistado Maurício Eça. Fonte: Reprodução/ Amazon Prime Video.
 Capa do filme “O Menino que matou meus pais”. Centralizada está a atriz Carla Diaz, atriz que representa Suzane Von Richthofen, atrás dela está o ator Leonardo Bittencourt, que interpreta Daniel Cravinhos na trama. Os dois estão posicionados à frente de um fundo escuro. O título do filme está escrito em letras garrafais pretas, as letras “O” foram substituídas por letras “A” em vermelho posicionado à frente dos dois atores. A palavra “os” foi substituída por “meus”, também escrita em vermelho.
Capa do filme da trilogia “A menina que matou os pais”, obra do gênero true crime todos produzidos pelo diretor entrevistado Maurício Eça. Fonte: Reprodução/ Amazon Prime Video.
Capa do filme “A menina que matou os pais: A confissão”. Da esquerda para a direita estão os atores: Allan Souza Lima, que interpreta Cristian Cravinhos, Leonardo Bittencourt que interpreta Daniel Cravinhos, Carla Diaz que representa Suzane Von Richthofen e a atriz Fernanda Viacava que representa a delegada Flora. Carla Diaz está posicionada à frente dos demais. O fundo é escuro e o título está posicionado à frente dos atores, escrito em letras garrafais pretas.
Capa do filme da trilogia “A menina que matou os pais”, obra do gênero true crime todos produzidos pelo diretor entrevistado Maurício Eça. Fonte: Reprodução/ Amazon Prime Video.

Afinal, qual o dilema do true crime? 

Streaming, cinema, documentário, série, ficção: cada formato molda a percepção de maneira distinta. Segundo Cymrot: “A imagem tem um poder muito forte. Quando você assiste, vê os personagens, a trilha sonora, a atuação. Isso pode até fazer com que você torça pelo criminoso.” 

Duas mulheres sentadas à esquerda entrevistam Danilo Cymrot, criminólogo, que está sentado de frente para elas à direita da imagem, com uma mesa redonda separando-os. A parede de fundo é bege e conta com uma lousa de vidro.
Entrevista exclusiva com Danilo Cymrot acerca de uma possível romantização de homicidas em produções audiovisuais, doutor e mestre em criminologia. Foto: Maria Luiza Palombello/Agenzia.

O gênero true crime revela mais do que apenas os crimes brutalmente cometidos e as mentes perturbadas dos assassinos, também explicita como a sociedade consome esse delito e o transforma em mercadoria no universo do entretenimento. A banalização de homicidas, que passam a ser tratados como meros “personagens” ficcionais, é outro efeito preocupante dessa tendência.  

Ao mesmo tempo que pode informar e provocar reflexões e pensamentos nos telespectadores, pode também correr o risco de romantizar a violência e desumanizar as vítimas em nome da audiência ou lucro. Diante disso, o questionamento é claro: como equilibrar e manter o interesse público com o respeito aos envolvidos? Como consumir esse conteúdo conscientemente sem alimentar o sensacionalismo do horror? 

Entre o lucro e o respeito à dor alheia, os criadores dessas narrativas percorrem um caminho delicado, em que suas escolhas estéticas e editoriais têm o potencial de moldar percepções sociais, reabrir feridas emocionais e até impactar desdobramentos legais e judiciários. Tendo isso em vista, o maior desafio está em equilibrar o interesse do público com a responsabilidade ética de não transformar tragédias reais em espetáculo.  

UTILIZAÇÃO DE IA

Autoria humana exclusiva

Este conteúdo é integralmente de autoria humana, sem uso de Inteligência Artificial em nenhuma etapa da produção.

Larissa Olm

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