Moradores do bairro da zona leste paulistana enfrentam recorrentes enchentes e precariedade, mas o problema é mais do que apenas ambiental
Por Sofia Silva Paiva, Emily Amorim, Julia Albergoni, Guilherme de Santi, Giovanna Pacheco e Pedro Victor dos Reis Veneziani
A chuva é e sempre foi uma obsessão no cotidiano paulista. Porém, imagine lidar com esse estresse diariamente em uma zona vulnerabilizada e ignorada pelo governo. Essa é a vida dos moradores do Jardim Pantanal, localizado na zona leste de São Paulo, às margens do rio Tietê, que sofrem com enchentes e, atualmente, estão sendo incentivados a sair da área com auxílios da Prefeitura e até multas.

Foto: Guilherme de Santi
Um dos moradores, que se identifica como “Pipiu”, mora há 28 anos no Jardim Pantanal. Contou à Agenzia que tem vida consolidada no bairro, com uma casa, esposa e 4 filhos. “Não tem lugar melhor que aqui! Já morei na Cachoeirinha, no Jardim Elisa Maria, de frente pra Cidade Universitária, e não achei um lugar melhor que aqui”, afirma. Segundo ele e outros vizinhos, o real problema é o esquema de escoamento de água. “Quando chove, a comporta de Suzano é aberta, e a comporta da Penha, que escoa para a Marginal Tietê, permanece fechada. É isso que causa os alagamentos. Se lá (Suzano) ‘tá’ vazio, aqui ‘tá’ cheio, aí quando eles abrem a água corre no mesmo dia”.
Moradores como Pipiu vivenciam, faça chuva ou faça sol, o drama do racismo ambiental no dia a dia da comunidade. Por serem pobres, periféricos, pretos ou pardos, eles vivem sob um teto que mal conseguem pagar ou ocupar. E sempre sob condições precárias. O Jardim Pantanal, como outros bairros distantes e de grande concentração populacional, resume como a justiça climática é, no Brasil, uma luta injusta.
Mas, afinal, o que é racismo ambiental?
A comunicóloga e professora Tatiane Regina Amiel afirma: “O racismo ambiental é um braço do racismo estrutural, que é histórico. E não se trata apenas de questões climáticas, mas também da negação ao acesso dessas pessoas a espaços e necessidades que dão dignidade à vivência humana (saúde, transporte, lazer, trabalho etc.), dentro do processo de moradia, as piores condições de vivência humana restaram para as pessoas periféricas, e o corpo periférico, é automaticamente por uma questão histórica, o corpo negro”.
O professor de gestão ambiental e geografia na Universidade de São Paulo Marcos Bernadino também comenta: “A ideia do racismo vem para evidenciar isso: as questões ambientais, os resultados dos problemas ambientais socialmente criados, eles não se distribuem de forma equitativa (uniforme) entre as pessoas, e dentre essas pessoas, têm parcelas que sofrem mais ainda. […] Acaba tendo um recorte racial nessa questão.”
Apesar da questão racial, nem todas as pessoas afetadas por essas injustiças ambientais são negras. Por que, então, usar a palavra “racismo”?
Para responder a essa pergunta, é preciso voltar alguns séculos na história do Brasil. A Lei de Terras de 1850 dificultou o acesso a terrenos para a população negra quando a escravidão acabou. Assim essa população ficou restrita a locais mais precários, como periferias, encostas de morros e áreas de várzea, como é o caso do Jardim Pantanal. Dessa forma, permaneceu a desigualdade racial e a diferença de tratamento de bairros mais nobres e mais periféricos.
Quando o conceito encontra a prática: o Jardim Pantanal
O bairro é tão diferente e isolado do centro – urbanizado e cheio de prédios – que parece não estar dentro da metrópole paulista. As moradias e outros estabelecimentos são mais simples, algumas ruas não são asfaltadas e apresentam uma grande quantidade de lixo e entulho. E tem o problema das enchentes que invadem as casas, desesperam os moradores e levam dias para desaparecer. Porém, essa não é uma questão somente ambiental: o Jardim Pantanal surgiu por um problema social.
Bairros planejados eram — e ainda são — inacessíveis para a população mais pobre, que acabou por ocupar áreas mais irregulares, como as margens do Rio Tietê. O próprio Jardim Pantanal era, inicialmente, uma Área de Proteção Ambiental, que começou a ser ocupada em 1986, e casas começaram a ser construídas irregularmente.
“O que acontece, é que aqui em São Paulo, qualquer lugar que você vai morar tem que pagar 700 a 1000 ‘real’ de aluguel. Hoje você muito mal tá arrumando o que comer, como vai pagar aluguel? O salário-mínimo é quanto? 1400 e pouco, nem em 500 chega direito… o aluguel 900, 1000 reais, vai comer de quê? Aí o coitado arruma um canto de fazer um barraco aí não deixam, pra ir vivendo devagarzinho… a alternativa é essa aqui”, diz o morador Pipiu.
Guilherme Gonçalves Gomes de Lima, outro morador da região, afirma que algumas pessoas já tentaram vender suas residências para morar em outro lugar, mas acabam voltando ao Jardim Pantanal por conta de custos: “Muita gente também já recebeu apartamento, o governo já auxiliou, já deu apartamento, só que muitas dessas pessoas venderam lá sua casa própria e voltaram pro mesmo lugar. […] Eu pago IPTU, tenho minha conta de água, minha conta de luz, então, muitas das vezes, nessas áreas, você não precisa pagar IPTU, conta de água, conta de luz…”

Quando os alagamentos acontecem na região, a água chega a mais de 1 metro e danifica os móveis e imóveis de quem mora por lá. Nessa situação, quem ajuda as pessoas desamparadas é a própria vizinhança e instituições do próprio bairro, que salvam aquilo que restou das enchentes. Guilherme relata que já recebeu pedidos de ajuda de quem sofreu com o problema: “As águas vinham muito na parte da noite, de madrugada, quando as pessoas estavam dormindo… Então, muitas pessoas passavam a pedir ajuda, pediam pra guardar as coisas que sobraram em casa.”
O racismo ambiental em números
O Jardim Pantanal possui, segundo dados do Departamento Autônomo de Água e Esgotos (DAAE), cerca de 130 mil moradores dos quais 45 mil habitam em áreas com maior vulnerabilidade a inundações.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ainda que defasados, também explicitam que os moradores do Jardim Helena são majoritariamente pretos, pardos ou indígenas, cerca de 69.162 pessoas das 124.855 que habitam a região na época.

Com relação às questões socioambientais envolvidas nesse mesmo processo, o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS) indica que o Jardim Pantanal está classificado no nível 6, o maior da escala, sinalizando a presença de aglomerados subnormais, alta concentração de população de baixa renda, condições de vida precárias, desigualdade sociais, entre outros problemas.
Como resolver esse problema?
A solução que atualmente é implementada pela prefeitura para a população do Jardim Pantanal é o plano “Recupera Pantanal”, que tem como objetivo desocupar áreas alagáveis e melhorar a drenagem da água. O projeto terá um custo de R$ 700 milhões e consiste em desocupação, pagamento de auxílio para aluguel ou moradia fixa para os desabitados e a recuperação ambiental da área da várzea do rio Tietê. Esse plano tem previsão de conclusão para 2029.
Também já foram cogitadas outras soluções para amenizar os alagamentos do bairro: a instalação de pôlderes, que removeriam parte da população e custariam cerca de R$ 1,3 bilhão, reformas que não exigiriam a retirada de pessoas do bairro e custariam por volta de R$ 1 bilhão, e a formação de um “bairro-esponja” (área sem impermeabilização para drenagem de água) que exigiria a realocação dos moradores. Dentre elas, a opção defendida pelo Prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, é a remoção dos moradores do local, e a indenização das famílias no valor entre R$ 20 mil e R$ 50 mil, dependendo da casa.
“Estou fazendo um pôlder lá. Tem uma obra que a gente estava orçando, para fazer um dique, mas fica mais de R$ 1 bilhão. É muito caro, não vale a pena. Aquelas pessoas vão ter que sair dali. Não tem jeito. Está abaixo do nível do rio, é muito complicado”, afirmou o prefeito em uma coletiva de imprensa comentada pelo jornal Metrópole. A solução proposta por Nunes, além de ser mais a cara, cerca de R$1,9 bilhão, não é bem aceita pela população do Jardim Pantanal.
Bernadino aponta que tecnologias que impedem os desastres ditos “naturais” não são uma medida definitiva, muito menos acabariam com os problemas ambientais. O ideal, segundo ele, seria agir na raiz do problema, ou seja, reestruturar o modelo de sociedade que cria as desigualdades social e racial. Levando em conta as medidas mais viáveis, seria mais adequado reivindicar espaços mais seguros para viver em vez de usar tecnologias de contenção de danos — mas deveria ser feito um levantamento antes de realocar as pessoas para que haja uma real melhora na qualidade de vida.
