Em um país marcado pela desigualdade e pela violência, mulheres trans enfrentam a marginalização cotidiana, lutando pelo reconhecimento, dignidade e direitos básicos.
Por: Alice Muniz, Giovanna Fernandes, Letícia Beatriz, Lívia Rodrigues e Rafaela Mina
Há 16 anos seguidos, o Brasil é o País que mais mata mulheres trans e travestis no mundo. É essa estatística que faz a ativista Leonna Moriale ter medo até de andar na rua. “Quando eu saio, não sei se volto viva pra casa.” Ela era ainda criança quando, aos 12 anos, foi agredida pelo próprio pai. Motivo: vestia a saia de balé da irmã. Esse episódio marcou o início de uma série de violências que atravessaram sua vida como mulher trans. Quatro anos depois, encontrou nos palcos e na arte drag uma forma de se reconhecer e iniciar sua transição social.
Leonna não teve apoio da família, nem proteção no ambiente de trabalho. “Trabalhei um ano e meio omitindo a minha identidade de gênero, fui demitida ao dizer que era uma mulher trans”, lembra. A violência, segundo ela, nunca se limitava à casa: “A minha maior dificuldade foi apanhar dentro e fora de casa e sempre ter minha capacidade intelectual questionada”.
Relatos como o de Leonna materializam uma estatística alarmante: segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% da população trans no Brasil sofre algum tipo de violência física ou verbal.

Foto: Acervo pessoal/ Wildally Souza
A trajetória de marginalização de muitas mulheres trans começa com a expulsão do próprio lar. Marcela Almerindo, estudante do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, lembra que foi colocada para fora de casa ainda adolescente. “A gente não tem escolha. É sobreviver ou morrer”, afirma. Sem apoio da família, abandonou a escola para trabalhar. “Essa é a realidade da maioria das meninas trans. Não tem outra opção”.
Esse abandono dentro de casa, somado ao preconceito estrutural, leva a consequências previsíveis: evasão escolar, dificuldades de acesso ao trabalho formal e, muitas vezes, a prostituição como única alternativa de renda.
Segundo a Antra, 90% da população trans brasileira trabalha com prostituição, e a expectativa de vida dessa comunidade é de 35 anos, 41,4 anos a menos que o resto dos brasileiros.
A violência na prostituição é constante. Muitas mulheres trans são vítimas de agressões durante os programas ou contraem doenças por falta de preservativo e de acesso à saúde. É por isso que Paula Rodrigues, mulher trans ativista, encara sua sobrevivência como resistência: “Chegar aos 44 anos é uma estatística boa, porque mostra que estamos vivendo mais do que antes”.
Acesso precário à saúde
No Brasil, a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, completa 15 anos em 2025 e busca promover a saúde integral e contribuir para a redução das desigualdades sociais pelo qual essas pessoas passam. Mas ainda há muito trabalho a ser feito para que o acesso à saúde seja igualitário.
A realidade nos hospitais e postos de saúde fala por si. A estudante Marcela relata que já teve atendimento negado tanto no Sistema Único de Saúde (SUS) quanto na rede privada porque médicos disseram não saber como atendê-la. Isso evidencia a falta de preparo dos profissionais de saúde e a ausência de formação específica sobre pessoas trans.
Além da dificuldade de acesso, há também o preconceito disfarçado de “diagnóstico”. Marcela conta que, certa vez, um dentista presumiu que ela era soropositiva apenas por ser trans. “Foi humilhante.”
A automedicação é outro reflexo cruel da exclusão. Muitas mulheres trans, sem acesso à hormonioterapia, recorrem ao uso de medicamentos clandestinos ou veterinários. Leonna menciona o ECP (cipionato de estradiol), medicamento de uso veterinário, como exemplo do que se utiliza na ausência de alternativas seguras. “É o que temos. Mas pode causar infarto, câncer… e a gente sabe disso”, conta.
O problema tende a se agravar após a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), publicada em abril de 2025. Se for adotada, restringirá o acesso à harmonização e à cirurgia de redesignação para jovens e obrigará adultos a passarem por um ano de acompanhamento psiquiátrico. Para especialistas, essa medida é vista como mais uma forma de violência institucional e representa um retrocesso nos direitos da população trans.
A terapia hormonal, assim como as cirurgias, representa um papel fundamental no processo de afirmação de gênero. Portanto, ao dificultar e atrasar essa etapa da jornada transgênero, como propõe o CFM, aumentam os riscos para a saúde mental e física dessas pessoas.
“A saúde mental das mulheres trans é afetada desde cedo. Falta preparo, acolhimento e acesso a profissionais capacitados. E quando não há isso, a violência se reproduz”, explica a psicóloga Marina Mandarini. Segundo dados publicados no Estadão, 63,6% das mulheres trans não conseguem pagar por atendimento psicológico.
Diante dessas situações, Marcela Almerindo busca atendimento apenas no Ambulatório Trans, promovido pelo SUS, que existe em sua cidade. Esse serviço, que tem como objetivo atender as travestis e transexuais de forma integral, possui uma proposta interessante, mas ainda precisa de melhoras para conseguir assistir toda a comunidade trans.
A psicóloga acrescenta que para fortalecer a saúde mental de pessoas trans o ideal seria que a nossa sociedade fosse mais inclusiva e respeitosa, além de precisar de mais políticas públicas voltadas para a comunidade trans. Dentro delas uma direcionada a democratização do acesso a profissionais da área de saúde mental. “Ao fazer parte da família, escola e comunidade de maneira saudável, as pessoas trans se fortalecem e mantêm a sua saúde emocional integral”, adiciona Marina.
Escola como espaço de exclusão
A exclusão das mulheres trans começa cedo. E, muitas vezes, na escola. “Esses espaços nos expulsam. Ou é pela violência institucional ou dos próprios colegas”, diz Leonna. A consequência é que, segundo a Antra, mais de 70% das mulheres trans abandonam os estudos antes de concluir o ensino médio.
Marcela lembra que já sofreu transfobia de professores, que insistiam em usar seu nome social de forma errada. “Presumiam que meu nome social era o masculino do meu nome de registro. Foi constrangedor.”
Essa exclusão compromete o acesso ao mercado de trabalho. “Sem educação, sem diploma, com preconceito… fica tudo mais difícil”, resume Leonna. Hoje, apenas 0,02% das mulheres trans chegam ao ensino superior.
Paula Rodrigues relata que sua experiência escolar não foi muito diferente e aponta que as escolas não estão preparadas para receberem alunos trans.

Foto: Ted Eythan.
Leonna reforça a necessidade de políticas públicas para reverter esse cenário. “E a gente deve combater tudo isso com política pública, porque as pessoas que não têm condições de frequentar uma escola e uma universidade têm uma colocação no mercado de trabalho muito inferior. O mercado de trabalho é preconceituoso por si só. Sem a qualificação, são duas vezes mais difíceis esse acesso.”
O apoio e a aceitação da família, amigos e escolas são essenciais para que pessoas trans não abandonem o ensino e conquistem uma vida digna. Enquanto ambientes escolares e universitários continuam sendo espaços de exclusão e invisibilidade, o ciclo de marginalização de mulheres trans continuará acontecendo.
Trabalhar sendo trans: um desafio diário
A carreira profissional de mulheres trans é repleta de desafios. O mercado de trabalho para essas pessoas é extremamente limitado por conta de preconceitos e falta de oportunidades. A educação precária que essas mulheres recebem intensifica a dificuldade de empregabilidade.
Marcela já trabalhou como garçonete, vendedora e faxineira, mas sempre enfrentou assédio e rejeição. “Já cancelaram meu contrato na hora porque viram meu nome civil na identidade e não entenderam o nome social”, relata.
Leonna também denuncia que a simples presença de pessoas trans em empresas não é suficiente se não houver acolhimento real. “Tem gente que contrata para bater meta de diversidade, mas não respeita banheiro, pronome, identidade. Isso não é inclusão.”
A ativista Paula Rodrigues completa: “Quando somos expulsas de casa, a única coisa que sobra é a rua. Lá estão as cafetinas. Elas ‘bombam’ as meninas com silicone e PMMA e mandam para a pista. É isso ou morrer.”
E não é só dificuldade de conquistar um emprego. O planejamento de carreira, presente na vida das trabalhadoras, é algo estressante. Para elas, são comuns situações constrangedoras presentes no mercado de trabalho, como a utilização dos banheiros e a desigualdade salarial “Não basta colocar a pessoa trans na empresa. Ela precisa ser acolhida e respeitada. Então, não. As políticas públicas atuais não são suficientes”, aponta Leonna.
Resistências e conquistas
Hoje existem diversas redes de apoio presentes em redes sociais, ONG’s e casas de acolhimento que foram construídas por meio da união da comunidade e de indivíduos que também lutam pela causa. Mesmo com muitos desafios, as mulheres trans vêm conquistando direitos e visibilidade, apesar de ainda ser um processo demorado e muitas vezes falho.
A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu em 2022 que a Lei Maria da Penha se aplica aos casos de violência doméstica ou familiar também contra mulheres transexuais. Em 2025, o STF estendeu essa proteção a casais homoafetivos formados por homens e a mulheres travestis e transexuais. Sete anos antes, também por decisão do STF, pessoas trans puderam mudar seu nome e gênero no registro civil sem necessidade de cirurgia ou processo judicial, o que facilitou muito o acesso a documentos com a identidade correta.
Em relação à carreira profissional, nos últimos anos, houve aumento significativo de mulheres trans eleitas para cargos públicos. Um exemplo marcante é Erika Hilton (PSOL), uma das primeiras mulheres trans eleitas deputadas federais no Brasil (2022). E graças a políticas de cotas e programas de inclusão, o número de mulheres trans em universidades vem crescendo. Algumas instituições já oferecem vagas específicas para pessoas trans e travestis.
Desde 2010, o SUS realiza cirurgias de redesignação sexual, garantindo esse direito às pessoas trans. Recentemente, o STJ determinou que planos de saúde particulares também devem cobrir esse tipo de procedimento, representando uma conquista importante para a população trans que deseja realizar a cirurgia.

Foto: Ted Eythan.
Outro avanço significativo ocorreu em 2019, quando o STF decidiu que atos de homofobia e transfobia devem ser enquadrados da mesma forma que crimes de racismo. Essa medida foi adotada diante da omissão do Congresso em legislar sobre a criminalização específica da discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Desde então, práticas preconceituosas contra pessoas homossexuais e transexuais passaram a ser punidas sob a Lei do Racismo, fortalecendo a proteção jurídica contra a intolerância.
Para que as mulheres trans parem de ser marginalizadas na sociedade, existem inúmeras coisas que precisam mudar, mas a principal é a educação da população brasileira, que é formada de ignorância. “A educação deve vir de casa, porque a faculdade da vida ensina muita coisa contraditória ao ser humano “, expõe Paula.
“Como sociedade, a gente precisa aprender que não existe um jeito certo ou um jeito errado de existir, que as pessoas são diversas e que isso não torna elas piores, perigosas ou menos dignas, nem de afeto, nem de direitos e nem de nada “, acrescenta Marina Mandarini.