sexta-feira

13-junho-2025 Ano 1

Made for Kids: O paradoxo da proibição da publicidade infantil

Como a proibição da publicidade infantil afetou a TV aberta e fomentou o mercado dos influencers mirins e criadores de conteúdo digital para crianças

Por Mariana Berti, Pedro Henrique Sant’na da Costa e Rafaella Pacheco 

A cena é simples: sentada no chão de casa, uma menina pelos seus 8 anos se fantasia de cartomante e simula uma hipnose, balançando o chocolate em pêndulo enquanto repete o mantra “compre Baton, compre Baton, seu filho merece Baton”. Lançado em 1992, este foi um dos comerciais de TV que geraram uma onda de campanhas e regulamentações contra a propaganda infantil. Com seu tom imperativo e provocativo, a publicidade infantil na época evocava o espírito de rebeldia e irreverência das crianças e dos adolescentes. E movimentava um gigantesco mercado, nele contidos fábricas de brinquedos, jogos, produtos alimentícios e as emissoras de TV e rádio. 

Visto aos olhos de hoje, aquelas peças publicitárias abusavam da ingenuidade das crianças. Geravam uma necessidade de consumo em quem não tem discernimento nem autonomia financeira para tomar as próprias decisões. Em sua maioria, eram comerciais encenados por menores de idade, que tinham suas imagens não apenas expostas, como também associadas a marcas, falas e ideologias as quais não poderiam sequer compreender, imagine concordar. 
 

Divulgação/ PAN Produtos Alimentícios Nacionais


Da TV para a lei – A proibição da publicidade infantil

Nos anos 1990, os esforços e campanhas surtiram efeito e a publicidade infantil se tornou cada vez menos aceita pela sociedade, até ser expressamente proibida em 2014. A Resolução nº 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) definiu como abusiva toda publicidade e comunicação mercadológica direcionada a crianças até 12 anos. Aqui, é importante entender – segundo a lei – o que é comunicação mercadológica, e o que é considerado ‘destinado ao público infantil’

A lei considera uma publicidade infantil abusiva aquela que quer persuadir o público infantil a consumir o produto ou serviço apelando para “linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores”; “trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança”; “representação de criança”; “pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil”; “personagens ou apresentadores infantis”; “desenho animado ou de animação”; “bonecos ou similares”; “promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil” e “promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil”. 

Este é o fato. Mas nada disso parece ter sumido, certo?  

Mercado em transição

Menos de um ano depois da resolução, a querida TV Globinho chegava ao fim, acabando com a grade de programação infantil na maior emissora de TV aberta, a Globo. Não demorou para que outras gigantes do entretenimento, como Record, Band e SBT reprimissem a grade dos baixinhos e privilegiassem programas familiares que cativassem também os adultos. Mais tarde, algumas dessas programações se tornariam canais fechados focados em público infantil, como o Gloob do grupo Globo.  

Ainda em 2014, o então diretor geral da Band em Brasília e presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, Flávio Lara Resende, disse em entrevista ao jornalista Sandro Nascimento que a decisão do fim da publicidade infantil seria ilegal e inconstitucional. Disse também que esta prejudicaria crianças carentes, pois as emissoras abertas reduziriam drasticamente a programação voltada ao público infanto-juvenil, devido à falta de anunciantes, gerada pela insegurança jurídica. 

Talvez os ativistas dos direitos das crianças que lutaram por essas mudanças no século passado ficassem felizes em saber que, mais de 30 anos depois, a TV já não exibe mais nenhuma publicidade infantil. Nem os banners e impressos, e muito menos a rádio. Ou talvez, eles percebessem também que os desenhos animados e programas infantis da TV aberta desapareceram com os anúncios. As crianças já não consomem mais brinquedos como antes. As músicas infantis não são mais estimulantes, nem originais, tampouco nacionais…  

Se todo um mercado gigante foi engolido, onde foram parar a atenção e o investimento deste público tão disponível?

O foco agora é o digital e suas armadilhas capazes de transformar até o mais formado dos adultos em alguém manipulável. Em outubro de 2024, o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) publicou um estudo revelando que 93% das crianças no Brasil têm acesso à internet, sendo 83% com perfis em qualquer tipo de rede social. Entre adolescentes o número é ainda mais expressivo, mais de 99% dos teens entre 15 e 17 anos estão nas redes sociais. 

Foto de Ludovic Toinel na Unsplash | Criança com tablet ligado, com a luz da tela iluminando seu rosto.

“BROADCAST YOURSELF” – A ascensão das plataformas midiáticas

A jornalista, advogada e pós-doutora pela Escola de Comunicações e Artes da USP, Ana Torezan, especializada em direito da criança e do adolescente e pesquisadora do assunto, comenta: “Se a evolução é lenta na propaganda televisiva, imaginem na internet, que é um mundo muito maior, com um controle muito mais fluido e difuso”. 

Entre 2010 e 2016, entrou em cena a primeira grande leva de pessoas influentes na internet. A plataforma do Youtube se popularizou no Brasil por trazer um conteúdo jovem, intimista, sincero e com uma aproximação entre público e comunicador nunca vista até então. Entre os conteúdos populares estavam os “vlogs”, os blogs numa roupagem audiovisual, as “gameplays”, onde meninos e meninas filmavam suas telas e seus comentários enquanto jogavam videogame, os vídeos de beleza e maquiagem, e claro, os humorísticos. 

Logo Youtube | Imagem: Youtube for Press

“Molde o seu mundo”- a nova sensação dos jovens

Um dos primeiros exemplos a furar a bolha e explorar o potencial comercial da plataforma foi o famoso Minecraft, jogo digital responsável por popularizar grandes figuras, influentes até hoje. Graças a eles, o jogo cresceu exponencialmente e virou, de forma transmídia, também marca de brinquedos, tema de festa infantil, série animada e até filme de Hollywood. Essas personalidades inspiraram muitas crianças a fazerem o mesmo: criar um canal e postar vídeos de algo que elas amavam fazer.  Normalmente acompanhados de amigos, fica claro a idealização de seguir uma carreira baseada em jogar e se divertir, enquanto os pais pensam em como poderiam lucrar com isso. Porém, somente uma pequena parcela de sonhadores conseguiu deslanchar e se destacar dentro da rede de vídeos. 

Minecraft | Imagem: Mojang Studios/Microsoft

Entre os poucos que atingiram sucesso, muitos criadores sentiram a necessidade de adaptar seus conteúdos conforme as tendências digitais mudavam, com o objetivo de manter a base de seguidores conquistada ou, até mesmo, aumentar sua audiência. Recorreram a estratégias apelativas como o uso de títulos com duplo sentido ou capas de vídeo com imagens inadequadas ou violentas para o público infantil, muitas das vezes sem serem censurados. Apesar de serem consideradas práticas eficientes para atrair visualizações, ao serem empregadas em conteúdos onde o público é, majoritariamente, infantil, a prática se torna inapropriada e problemática. De 2010 a 2016, a Minecraft faturava cerca de US$ 1,6 bilhão somente investindo no ambiente digital. 

Audiência de milhões

Conforme divulgado na Web Science Conference 2022,  esses canais se utilizam de palavras-chave, temas e descrições popularmente conhecidas entre crianças e acabam sendo recomendados a uma faixa etária incompatível à temática dos vídeos. O estudo também destaca que embora o Youtube tenha adicionado, em 2019, o rótulo “Made for Kids” para que os usuários categorizem seus conteúdos voltados ao público infantil, a regra se revela insuficiente e alguns vídeos acabam escapando essa limitação. 

Divulgação / Youtube Press

Dos 50 maiores canais do Youtube Brasil, 26 produzem conteúdo estritamente para o público infantil e infanto-juvenil. O maior dentre eles – Luccas Neto – com 51,9 milhões de inscritos ultrapassa o irmão, Felipe Neto, e prova que o público infantil é o mais engajado, consolidado e fiel consumidor na internet. Embora o Youtube ainda seja uma plataforma focada em vídeos longos, geralmente até educativos, sua nova ferramenta, o Shorts, o coloca na mesma categoria do Instagram e do TikTok: plataformas de vídeo curtos de rolagem automática altamente viciantes. 

Os riscos iminentes dessa exposição involuntária e, de certa maneira, evitáveis são criticados pelo pediatra do Departamento Científico de Neurologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Eduardo Jorge Custódio:

“A criança está ali, onde ela deveria estar brincando, socializando… e está sendo transformada em um produto. Ela perde o direito de dizer “não”, de se frustrar, de viver sua infância.”  

O papel dos pais enquanto gerenciadores da “marca infantil”

A lei que antes proibiu apresentadores infantis em contexto mercadológico parece ignorar o protagonismo que os menores exercem nas redes e mais ainda o potencial publicitário que carregam. Intitulados agora “influenciadores”, os criadores de conteúdo não escondem que querem influenciar comportamentos de consumo – e lucrar com isso. É claro que este não é o propósito de uma criança, mas a fim de que qualquer perfil se mantenha grande, popular e comercial, é necessário alguém por trás com essa visão. 

A advogada Ana Torezan ajuda a entender mais uma problemática envolvida na superexposição de crianças na internet: a da violência patrimonial. Ela pontua a importância da aprovação da Lei Larissa Manoela (PL 3914/23) e como a atuação e o nível de preocupação dos pais por trás da carreira artística fomenta para maturidade e capacidade progressiva dessa criança: “A grande questão é que muitas vezes as crianças são vítimas do que chamamos de violência patrimonial, com pais explorando essas crianças. Nesse sentido, a lei Larissa Manoela, já aprovada em uma das casas do Congresso, é muito importante para nós, pois ao trabalhar o trabalho infantil artístico nas televisões – e isso se estenderá a qualquer trabalho infantil artístico –, essa legislação será muito relevante”. 

Desde os 4 anos, Larissa Manoela já tinha a imagem vinculada à publicidade infantil. Aos 6 começou a atuar em novelas e filmes e, ainda aos 11 anos, ficou nacionalmente famosa pelo papel de Maria Joaquina na novela infantil Carrossel, do SBT. Dali para frente sua carreira decolou. A atriz estrelou filmes, séries, dublagens, se consolidou nas novelas, abriu empresas e fez centenas de comerciais. Em 2023, aos 22 anos e com fortuna estimada em dezenas de milhões de reais, Larissa expôs para todo o país nunca ter tido autonomia sobre seu dinheiro, tampouco sobre as decisões em relação a sua carreira, mesmo depois de adulta.

Mais tarde, em rede nacional, Larissa abriu mão de seu patrimônio e rompeu a relação com os pais em busca de liberdade e independência. O caso, bastante comum no exterior e relativamente inédito no Brasil, lançou luz à falta de controle legal sobre os ganhos de menores de idade e a vulnerabilidade de artistas mirins.

Reprodução / SBT

Ana deixou claro que este tema desperta múltiplas preocupações, e as crianças urgem ter seus direitos protegidos tanto como criadores como quanto público telespectador: “Essas questões digitais infantis artísticas, sem a devida fiscalização, são absolutamente nefastas para as crianças. Carecemos de uma normatização mais detalhada e aprimorada para fazer frente a esses abusos”. 

A especialista ressaltou que embora imperem o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Lei Geral da Proteção de Dados (LGPD) e a Resolução 163/2014 do Conanda, estes são insuficientes e falhos perante o caráter volátil e efusivo da internet. Hoje, a principal chave para a fiscalização e implementação da legislação são as próprias plataformas, que são espaços digitais sem rastreabilidade geográfica, operados por bilionários e com bases de dados privadas. Adaptar-se à revolução digital é um desafio até mesmo para legisladores: “Estamos todos cansados, inclusive as crianças. Devido a essa rapidez e efemeridade, não conseguimos acompanhar os tempos modernos, nem mesmo o legislador”, afirma a advogada Ana. “Precisamos verdadeiramente de um Marco Civil voltado aos direitos digitais de crianças e adolescentes.” 

Os impactos emocionais de uma infância na influência

O esforço realizado para conter imperativos para crianças em rede nacional não parece repercutir frente a uma nova geração que passa a ser consumidor e produto ao mesmo tempo. Tudo que foi considerado abusivo em 2014 ocorre diariamente nas redes sociais, em canais com centenas de milhões de visualizações financiados por gigantescas marcas, – quando não por entidades antiéticas e proibidas para menores, como as bets e os jogos de azar. Os nove itens da resolução, muitas vezes, podem ser encontrados todos em um único vídeo, inclusive em vídeos financiados e postados sem sinalização de publicidade. E não se pode pressupor que a criança vá exercer seu pensamento crítico e refrear o consumismo ao ler “publicidade” na legenda. 

Com boa intenção, a produção responsável de entretenimento e de publicidade infantil fora cerceada para ceder espaço a um mundo sem lei, sem regulamentação e fiscalizado apenas por aqueles que lucram com suas próprias irregularidades. Os programas de TV educativos, criativos, responsáveis e que carregavam uma identidade cultural nacional e rica, hoje foram substituídos pela hiperexposição de crianças, febres de consumo e uma adultização do público infantil no mundo digital. Essa transformação de conteúdos se tornou uma realidade difícil de se reverter, obrigando a sociedade a se esforçar para minimizar os danos já causados.  

Foto de Kaboompics.com | Pexels

As crianças e adolescentes são os primeiros a serem afetados e julgados dessa cadeia tecnológica. Com um cérebro ainda em desenvolvimento, eles não são capazes de compreender a intenção perversa por trás da superestimulação e lógica das redes sociais, com o algoritmo, os likes, os seguidores e a validação constante. Os conteúdos rápidos dispensam o pensar e os colocam em um estado de transe causado pela dopamina. É a verdadeira ‘soma’ de nosso admirável mundo novo. 

A psicóloga, professora e pesquisadora pela Unifesp, Miriam Modesto, diz não ser exagero comparar a inserção no digital com uma droga, sobretudo para crianças e adolescentes: “Parece que a cada dia mais se confirma o que os neurologistas dizem: essa interação constante com as redes se compara a uma droga, por causa do sistema de recompensa e da dopamina. Eles estão buscando o prazer imediato. Tem uma troca constante”. 

Um chamado a proteção infantil digital

Apesar da aparente irreversibilidade da situação, tanto Miriam, quanto Ana concordam que é possível mitigar os danos do uso das redes e da febre de consumo. É um desafio que pede a aliança da família, das instituições de ensino, dos veículos de entretenimento e comunicação e, sobretudo, das entidades públicas. Tal qual as drogas, é necessário que haja campanhas incansáveis para mudar a mentalidade coletiva, bem como medidas e fiscalização dramáticas. 

Neste contexto, Ana retoma as reivindicações dos anos 1990: “É urgente a necessidade de um Marco Regulatório na Propaganda Infantil que englobe vários tipos de propaganda, em especial as propagandas e conteúdos direcionados, muitas vezes de má fé e de forma fraudulenta, nas redes sociais”. 

Outra iniciativa pelas especialistas é o incentivo à produção responsável de conteúdo infantil, bem como sua democratização, garantindo o acesso de todas as crianças a conteúdos pensados e executados com qualidade visando estimular o desenvolvimento natural da infância. 

Ao fim do dia, o retorno do “compre batom” ou dos cigarrinhos pan continua inviável. A reflexão de quem de fato é protegido, porém, é válida.

UTILIZAÇÃO DE IA

Uso Moderado de IA

Este conteúdo foi produzido por jornalistas, com o auxílio de Inteligência Artificial em diversas etapas, tais como na revisão textual, auxiliadora da apuração jornalística, na checagem.

IAs Utilizadas: ChatGPT, Gemini, Deepseek

Rafaella Pacheco

20 thoughts on “Made for Kids: O paradoxo da proibição da publicidade infantil

  1. Adorei a matéria, muito interessante! Realmente precisamos falar mais sobre esse assunto e apurar o olhar para essa situação.

  2. Que matéria bem estruturada, texto irretocável! Parabéns aos jornalistas que de maneira clara e objetiva conseguiram abordar um tema extremamente importante nos dias atuais!!

  3. Realmente, a volatilidade do ambiente que é a Internet faz vítimas como se não houvesse fim. Ótima matéria!

  4. Matéria muito relevante em jogar luz nesse tema tão sensível em tempos de era digital. Parabéns!!

  5. Muito bom o texto! 👏 A gente esquece que, mesmo com leis, a publicidade ainda alcança as crianças de várias formas. É importante falar sobre isso e cobrar que a proteção aconteça de verdade. 🧒📺

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