Imigração, racismo e identidade nacional: Por que os jogadores imigrantes ainda incomodam tanto no campo e fora dele?
Por: João Vitor Beltrame, Leonardo Oliveira de Souza, Pedro Lanzarini, Pedro Paiva, Thiago Lucarelli

Créditos: João Vitor Beltrame/AgenZia
Quando vencer não basta
Nos dias de hoje, não é difícil encontrar jogadores imigrantes ou filhos de imigrantes nos times da Europa. Eles estão nas principais ligas, nas seleções e nos principais campeonatos do mundo. Mas, mesmo sendo comuns, esses atletas ainda enfrentam muito preconceito, a torcida os aplaude quando fazem gols, mas os ataca quando o time perde. Quando erram um pênalti ou falham em campo, o que pesa nem sempre é só o erro: é também a cor da pele, o nome estrangeiro, o cabelo diferente. O futebol, que para muitos é só um jogo, também pode revelar muito sobre o jeito como as pessoas lidam com identidade, imigração e pertencimento.
Especialmente na Europa, muitas pessoas ainda sentem que devem proteger seus países de influências externas. Isso se reflete no futebol. Muitos veem a seleção como um símbolo da pátria e, quando ela perde, culpam primeiro os jogadores com sobrenome estrangeiro ou aparência não europeia. O problema não é só o resultado: é a ideia de quem pertence e quem não pertence.
A final da Euro 2020 escancarou esse tipo de comportamento, quando a Inglaterra perdeu nos pênaltis para a Itália, em pleno Wembley. Três jogadores falharam nas cobranças: Rashford, Sancho e Saka, todos negros. Saka, filho de nigerianos, virou alvo nas redes sociais de ataques racistas. Comentários como “Volte para a Nigéria” e “Você não nos representa” se espalharam.
Benzema viveu algo semelhante. O francês, filho de argelinos muçulmanos, costumava dizer que só o reconheciam como francês quando marcava gols. Quando não rendia, virava “o árabe”.
Com Mesut Özil, o roteiro foi o mesmo. Campeão mundial com a Alemanha em 2014, aposentou da seleção em 2018 após sofrer perseguição por tirar uma foto com o presidente da Turquia. Mesmo tendo nascido na Alemanha, o fato de ser filho de imigrantes turcos pesou mais que seus títulos. Ao deixar a equipe, disse que todos os seus feitos pela nação alemã haviam sido esquecidos.

Créditos: João Vitor Beltrame/AgenZia
Carlos Massari, do grupo “Copa Além da Copa”, que trata de temas que transitam entre o futebol e a política, aponta que a rejeição aumenta quando o desempenho cai. O caso dos turcos na Alemanha é um exemplo claro disso: são muitos, têm presença cultural forte, e parte da população os enxerga como ameaça.
“A reclamação é que estão tomando o país, roubando empregos, influenciando demais. Quando não jogam bem, a paciência desaparece”, afirma.
Maria Elisa Castro, mestranda em Sociologia pela USP, afirma que essas reações revelam mais do que racismo individual. Para ela, o futebol é um campo simbólico onde se disputa o que significa ser parte de uma nação. Quando o jogador imigrante faz gol, ele é “nosso”. Quando falha, volta a ser o “de fora”. Em países com discursos políticos mais conservadores, esse movimento se intensifica. “A presença de imigrantes no futebol pode causar incômodo porque muitos ainda enxergam o esporte como extensão direta da identidade nacional”, explica.
Por outro lado, o desconforto com esses jogadores existe, mas não parece ser a visão dominante entre os torcedores. É isso que diz Rodrigo Lois, jornalista do GE, a identificação da maioria permanece, mesmo com o aumento de atletas naturalizados ou filhos de imigrantes. Ele destaca que as torcidas acolhem amplamente nomes como Bellingham, Nico Williams ou Lamine Yamal, o que revela uma compreensão crescente de que identidade não é algo fixo. Mas também é importante destacar que esses atletas citados estão vivendo os melhores momentos de suas carreiras, e o apoio da maioria da torcida também se deve por isso.
Em paralelo, essa discussão também afeta os clubes. Em fevereiro de 2024, o Liverpool entrou em campo com um time titular sem nenhum jogador inglês, algo inédito na história da Premier League. O caso gerou debate. Para André Pseudo, produtor da TNT Sports Brasil e torcedor do clube, a questão em Liverpool é mais complexa do que parece. “Muita gente lá nem se considera inglesa. Em Liverpool, dizem que são scousers, não ingleses. Acho que a ausência de um scouser incomoda mais do que a de um inglês propriamente dito”. Para ele, o importante é o vínculo cultural: onde o jogador se sente pertencente.
Heranças Autoritárias
Episódios atuais, por mais visíveis que sejam, possuem raízes profundas.Wilton Olivar de Assis, historiador formado pela PUC-SP e mestre pela Universidade Mackenzie, explica que um sistema global desigual, marcado por séculos de colonialismo e exploração, impulsiona as migrações para a Europa. Ele aponta que políticas neoliberais desestruturam economias do Sul global e geram fluxos migratórios inevitáveis “que depois são tratados como problema”. A criminalização da migração está institucionalizada. “O imigrante é visto como ameaça cultural. Isso se agrava no caso de muçulmanos, que são associados a estereótipos de fanatismo e terrorismo, reativando preconceitos coloniais.”
Ao longo da história, diferentes grupos usaram o futebol como instrumento para reforçar essa rejeição. A herança de regimes autoritários do século 20, como as ditaduras as de Hitler, Mussolini, Franco e Salazar usaram o esporte como ferramenta de controle e propaganda. Na Alemanha nazista, o FC Nuremberg era símbolo da “pureza ariana”. Na Itália fascista, a Juventus foi instrumentalizada pelo regime. Franco usou o Real Madrid na Espanha, e Salazar, em Portugal, utilizou o Benfica para promover a unidade nacional. São narrativas em que a identidade era única, fixa, e tudo que fosse diferente representava uma ameaça.
Iniciativas de Mudanças
Ainda assim, há quem tente mudar essa lógica. Três anos após o fracasso de Wembley, a Inglaterra tinha mais uma oportunidade de vencer a Eurocopa. O Museu da Imigração de Londres, Wonderhood Studios, agência de publicidade, e a The7stars, maior agência de mídia independente do Reino Unido, se uniram para não deixar que este preconceito tome conta de novo, como em 2020.
Para isso, montaram a escalação da seleção inglesa para a partida contra a Suíça, partida válida pelas quartas de final da Eurocopa de 2024, mas colocando faixas vermelhas nos nomes de jogadores que tiveram, em sua vida, ou na de seus pais e avós, a migração. Restando assim, dos 11 jogadores, apenas 3. Essa arte circulou por “pubs” no Reino Unido e nas redes sociais. Após as quartas de final, foi atualizada para mostrar que, sem os imigrantes que converteram seus pênaltis, a Inglaterra não teria avançado de fase.
Na semifinal, a obra foi reeditada. Kane, de origem escocesa, e Ollie Watkins, de origem jamaicana, os dois goleadores da partida, representavam trajetórias marcadas pela imigração. O slogan “England Doesn’t Win Without Migration” (“Inglaterra não vence sem migração”) foi pendurado no estádio, em meio às comemorações. A escalação foi, uma última vez, retificada para a final, mostrando que 16 dos 21 jogadores que jogaram a competição nasceram fora da Inglaterra, ou tinham, pelo menos, um dos pais ou avós nascidos no exterior. E um novo slogan: “England Wouldn’t Have Got This Far Without Immigration”, que, em português, seria “A Inglaterra não teria chegado tão longe sem a imigração”.
Com base nessas ideias, a campanha publicitária, em bares e nas redes sociais, teve uma grande repercussão, dentro e fora da Inglaterra, contando com mais de 1.600 telas de bares, e, pelas redes sociais, alcançando mais de 14 milhões de visualizações, buscando desmistificar a ideia de que a imigração é um assunto polêmico e trazer a pauta como algo comum. A Inglaterra não venceu a competição. Ainda assim, a reação dessa vez foi diferente, e isso já representa uma enorme vitória. Embora tenham ocorrido casos isolados, os números foram muito menores e o reconhecimento aos jogadores foi muito maior.. Bukayo Saka, uma vez vilão, dessa vez um herói que perdeu por pouco, e transmite otimismo para o futuro.

Créditos: João Vitor Beltrame/AgenZia