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14-junho-2025 Ano 1

Infância conturbada: as consequências na vida adulta

Traumas na infância afetam diretamente a forma como adultos pensam, sentem, se relacionam e vivem. Os efeitos vão além do emocional e impactam a saúde, o trabalho e os relacionamentos. 

Por Giulia Nakamura, João Rafael Madeira Pedroso Soares, Laura Bertin, Luiz Felipe Figueira Gorgone e Maria Eduarda Ferreira Gonçalves 

“Já atendi mulheres que sofreram abuso na infância e me disseram: ‘Essa é a primeira vez que estou falando disso com alguém’. Imagine você guardar violência, um abuso sexual por 30, 35 anos, e o quanto isso é uma ferida que não cicatriza. Com o tempo, a gente pensa que esqueceu, que ficou de lado, mas não. Uma hora vem e devasta a vida da pessoa.”

Quem afirma é a psicóloga Aline Marcelino, acostumada a acompanhar casos marcantes de pacientes que carregam traumas da infância durante décadas. Ela sabe que presenciar situações traumáticas na infância pode desenvolver doenças psicológicas muitos anos depois, como ansiedade generalizada, depressão profunda ou até mesmo problemas de raiva. 
 
Diversas crianças sofrem diariamente com o abandono dos pais, seja por conta de drogas, crimes cometidos ou o falecimento de seus genitores.  Pesquisa realizada junto a 4 mil jovens brasileiros aponta que mais de 80% deles passaram por eventos traumáticos até os 18 anos. Cerca de 30,6% dos diagnósticos estão ligados a traumas de uma infância conturbada, indica o estudo publicado pela revista The Lancet Global Health. O que poucos sabem é como essa questão afeta essas pessoas mental e fisicamente pelo resto de suas vidas. Uma infância conturbada não termina quando a criança cresce. Mesmo que os anos passem, os efeitos da instabilidade, do trauma e da negligência continuam a afetar a vida dela. 

Um comportamento inesperado em uma criança pode ser mais do que apenas uma fase passageira. Às vezes, é um grito silencioso por ajuda. Aline, formada pela Universidade Paulista, comenta sobre a mãe de uma criança de 8 anos, cuja filha voltou a urinar na cama sem motivo aparente. Preocupada, decidiu levá-la à psicóloga. A profissional que estava encarregada do caso entendeu que o motivo era abuso sexual, e o abusador era o próprio genitor da criança. A psicóloga descobriu que, certa vez, quando o pai foi realizar o ato, a criança urinou por medo, fazendo com que o violentador ficasse com nojo e desistisse. Com isso, a garota aprendeu que toda noite antes de dormir ela deveria tomar muita água para urinar na cama. Ou seja, pequenos sinais e mudança de hábitos podem indicar um problema muito maior, mesmo que este não seja verbalizado pela criança.  

Herança do sofrimento: impactos genéticos e emocionais 

Segundo Aline, traumas vividos na infância podem causar alterações no funcionamento dos genes, fenômeno chamado de alteração epigenética. Dessa forma, a sequência de DNA não muda, mas a forma como o corpo lê a sequência sofre alterações devido aos danos psicológicos causados pelos eventos traumáticos. A especialista destaca que mesmo crianças com tendência genética a transtornos podem não apresentar sintomas se crescerem em ambientes seguros. Por outro lado, aqueles que vivem em lares conturbados tendem a ter maiores chances de desenvolver problemas de saúde mental de forma precoce. 

A psicóloga também diferencia os impactos de traumas únicos, como a perda de um familiar, e os contínuos, como viver em um lar violento. Situações traumáticas recorrentes, especialmente sem acolhimento imediato, aumentam as chances de desenvolvimento do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (Tept). “Quanto mais situações adversas você passa, maior a chance disso acontecer. E se a criança não for acolhida, a ferida só aumenta.” De acordo com uma pesquisa publicada pela Revista de Saúde Pública, quanto maior o número de experiências traumáticas vividas na infância, maior o risco de uma série de problemas de saúde mental e física na vida adulta. A pesquisa identificou que adultos com altos níveis de trauma infantil tinham maior probabilidade de desenvolver doenças cardíacas, problemas respiratórios, obesidade, dependência química e comportamento suicida. 

Aline comenta sobre o processo de retirada de crianças de lares abusivos, que pode ser simples ou complexo, dependendo da situação familiar. Em alguns casos, a criança pode ser acolhida por outro responsável, como o pai ou um familiar. Já em situações mais complicadas, especialmente quando a denúncia parte de terceiros e não há familiares disponíveis, ela é encaminhada para abrigos, podendo posteriormente entrar no sistema de adoção. Em ambos os casos, o processo é extremamente estressante para a criança, que deve sempre ser vigiada e ter uma garantia de acompanhamento psicológico.  

Os tratamentos para crianças marcadas por eventos traumáticos existem e são fundamentais: “Vejo a importância tanto no tratamento psicoterapêutico quanto no psiquiátrico. É essencial o acompanhamento com profissionais capacitados, com base em evidências científicas. Se for evidência, pode ter um possível tratamento eficaz, agora, um profissional que não está capacitado vai piorar e destruir mais ainda a vida dessa pessoa”, afirma a psicóloga. Aline é analista comportamental e considera uma área eficaz por seu embasamento científico, mas menciona também que a terapia cognitivo-comportamental pode ser uma abordagem eficiente para lidar com traumas infantis. 

A psicóloga afirma que sua maior satisfação como profissional é ver que conseguiu realizar seu trabalho e afastar os menores de seus lares conturbados. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), todas as crianças devem ser protegidas e estar sob uma rede segura, o que infelizmente não acontece sempre. “É satisfatório demais fazer parte de cada um desses processos, ver a criança melhorando, me vem à cabeça que valeu a pena”, conta. 

Psicóloga Aline Marcelino. Foto registrada durante entrevista. – Foto: Giulia Nakamura/Agenzia

Entre a dor e o silêncio: autolesão na infância e adolescência

A adolescência e a infância são fases de intensas transformações físicas, emocionais e cognitivas, marcadas por maior vulnerabilidade ao impacto de experiências adversas. Diante desse contexto, torna-se essencial compreender como eventos traumáticos vivenciados na infância podem influenciar o comportamento dessas pessoas, especialmente no que diz respeito à manifestação de condutas auto-lesivas. A seguinte pesquisa foi feita por Mariana Siqueira Menezes e André Faro, ambos formados pela Universidade Federal de Sergipe, e publicada na Revista Psicologia: Ciência e Profissão. A proposta foi investigar a relação entre experiências traumáticas na infância e a ocorrência de comportamentos auto-lesivos dos jovens. O objetivo era entender os impactos dessas vivências sobre a saúde mental e emocional dos jovens, e para a construção de estratégias mais eficazes de prevenção e intervenção.  

Eventos traumáticos são situações que ameaçam a integridade física e/ou mental de uma pessoa, podendo gerar trauma psicológico. Esses traumas são resultados de experiências negativas do passado, manifestando-se no presente por meio de sofrimento e sensações negativas. Embora o trauma possa ocorrer em qualquer idade, crianças e adolescentes estão mais expostos. No Brasil, eles são frequentemente vítimas de violência. Esses jovens podem ter mudanças no sistema nervoso, sofrendo com problemas neurobiológicos e psicológicos, como memória, aprendizagem e questões emocionais. De acordo com o especialista Jack Shonkoff, jovens que crescem em lares seguros e estáveis tendem a desenvolver estresse “positivo”, diferente daqueles que vivem em ambientes violentos.  

Ainda segundo o artigo, as experiências traumáticas mais comuns na infância envolvem maus-tratos (intencionais ou acidentais), classificados em violência física, sexual, psicológica, negligência ou abandono. Eventos traumáticos afetam o desenvolvimento cognitivo, motor e emocional, gerando problemas como dificuldades de sono, fobias, depressão, insegurança, comportamentos agressivos e, frequentemente, auto lesivos. Tais comportamentos de autoagressão envolvem cortes, arranhões, queimaduras, uso de substâncias para causar ferimentos, consumo excessivo de medicamentos ou drogas. Os locais mais afetados são braços, pulsos, mãos, coxas e abdômen. A autolesão é mais prevalente entre adolescentes, especialmente entre 12 e 14 anos, que usam esses atos como forma de lidar com emoções negativas ou chamar atenção para si, sinalizando sofrimento e obtendo cuidados. Muitos têm dificuldade de pedir ajuda verbalmente. 

A pesquisa feita por Mariana e André tinha como objetivo coletar dados de violência infantil. Participaram 494 estudantes do ensino médio de ambos os sexos e idades entre 15 e 18 anos. Destes, 58,5% afirmaram ter sofrido abuso emocional de forma recorrente e 19,0% assumiram já ter sofrido abuso sexual e 59,5%, físico. Quanto à prática de autolesão, 65,0% revelaram já ter se engajado em comportamentos de autoagressão. As altas taxas de eventos traumáticos e de autolesão encontradas nesta pesquisa revelam a gravidade do problema. Os pesquisadores esperam que esta investigação possa contribuir para a elaboração de intervenções para prevenção e controle dos fatores de risco que acometem a população infanto-juvenil. 

Gráfico com dados retirados da pesquisa realizada por Mariana e André para a Revista Psicologia: Ciência e Profissão sobre abuso recorrente e práticas de autolesão em jovens.

Os reflexos da dependência química parental nos jovens

Neliana Figlie, Andrezza Fontes, Edilaine Moraes e Roberta Payá, todas psiquiatras formadas pela Universidade Federal de São Paulo, também realizaram pesquisa relevante para a Revista Brasileira de Psiquiatria Clínica. O estudo em questão tinha como principal objetivo compreender a vida de filhos de pessoas com dependência química, e pensar em formas de ajudar tais famílias. A pesquisa foi feita com 63 famílias da periferia de São Paulo, incluindo 54 crianças e 45 adolescentes. 

O estudo revelou que, em sua maioria, as famílias investigadas pertenciam à classe socioeconômica D, com os pais frequentemente sendo os principais dependentes químicos. A pesquisa apontou que, mesmo quando os companheiros(as) não eram dependentes, muitos apresentavam sinais claros de dificuldades emocionais e psicológicas, devido ao impacto de viver em um ambiente onde os pais dependem das substâncias. No caso das crianças, muitos sinais de sofrimento foram identificados, como sentimentos de tristeza, insegurança, dificuldades relacionadas à dinâmica familiar e carência afetiva. Também foram observados indícios de resiliência e energia emocional. Já os adolescentes apresentaram um quadro mais complicado, com maiores dificuldades emocionais e sociais, além de conflitos familiares intensos e falta de atividades de lazer e recreação. 

Esses resultados mostram que crianças e adolescentes filhos de dependentes químicos estão em situação de vulnerabilidade e apresentam uma série de fatores de risco para o desenvolvimento de problemas emocionais e comportamentais no presente e no futuro. Isso reforça a necessidade urgente de se criar e implementar programas de apoio especializados para essas famílias, que possam não apenas prevenir, mas também oferecer suporte adequado para lidar com as consequências da dependência química, promovendo a saúde emocional e o bem-estar dos filhos e das famílias como um todo. A intervenção precoce é essencial para amenizar os danos a longo prazo e garantir que esses jovens tenham mais chances de um futuro saudável.  

O impacto real do cuidado na infância

Criança com camisa do Brasil segurando brinquedo de boca sorrindo. Foto: Giulia Nakamura/Agenzia

Bárbara Murillo Gorgone participa voluntariamente do projeto Hamburgada do Bem. Tal programa consiste em juntar crianças carentes e fazer um grande almoço servindo lanches, onde Bárbara tem acesso a esses jovens que já sofreram ou sofrem com problemas familiares. Ela comenta que sua função na organização não-governamental (ONG) é fazer toda a parte de planejamento e logístico do evento, agindo na função de supervisora/coordenadora. A voluntária participa do projeto há três anos e meio, e rodou cidades como Grande São Paulo, Guarulhos, Campinas, Ribeiro Preto, São José dos Campos e Rio de Janeiro. Ela explica que sua motivação foi viver perto das crianças e entender que poderia fazer mais por elas, fornecendo o carinho e atenção que necessitam. “Aqui, na Hamburgada, a gente fala que parece hambúrguer, mas é amor.”  

Bárbara comenta sobre dois momentos marcantes. A primeira criança nunca havia experienciado um dia no projeto. Ao se aproximar, o garoto comentou: “Tia, você sabia que hoje é o dia mais feliz da minha vida? Eu nunca tive tanta atenção, posso te dar um abraço? É o seu dia mais feliz também?”. A segunda foi com uma menina por volta dos 7 anos. Bárbara perguntou se ela tinha um sonho, esperando que sua resposta fosse “sim”. Algo como ir à Disney, ganhar um videogame ou uma boneca nova. Ela respondeu que seu sonho era ter uma geladeira em casa, pois fazia meses que a sua havia quebrado e não tinham condições de comprar outra.

Além de Bárbara, existem outros exemplos de pessoas que fazem a diferença, como Eronildo Lima dos Santos, professor em uma creche que acolhe crianças em situações vulneráveis. Ele explica que o propósito do Quintal da Criança é receber jovens em situação de rua, abandonados, com uma família conturbada e até mesmo que estão passando por dificuldades familiares em geral. A creche também oferece segurança, alimentação e aprendizado dentro de uma proposta pedagógica para essas crianças.
 
Segundo Eronildo, as crianças são encontradas em visitas que a creche faz em lugares vulneráveis, como barracões, ruas e cortiços. O professor comenta que se sente feliz e realizado trabalhando em um projeto tão importante: “Sinto que faço pelo menos alguma diferença, nem que seja mínima, na vida dessas crianças”. Ele acrescenta que, por mais que seja gratificante, esse trabalho requer muito esforço, pois possui inúmeros desafios. Os jovens vêm de uma realidade complexa: alguns não têm pais, outros não têm um lar e, às vezes, o lar que têm não possui espaço suficiente para abrigar confortavelmente os membros da família. “As crianças vêm todos os dias muito empolgadas para brincar, elas chegam agitadas e lidar com elas e com as histórias que carregam, muitas vezes é bem desafiador”, completa. 

Eronildo lembra de dois casos comoventes. Uma de suas ex-alunas tinha 5 anos e foi abandonada pela mãe. Seu pai era alcoólatra e desaparecia por dias, deixando-a sozinha em casa em situações precárias. Uma família humilde que a conhecia começou a cuidar da menina e a levou para o Quintal da Criança, onde Eronildo a conheceu e tentou ajudá-la para que se sentisse acolhida. O segundo atendimento foi de um menino que tinha o pai ausente e sua mãe vivia nas drogas. O professor menciona que o garoto começou a se drogar logo na infância, com apenas 6 anos. Aos 13 anos ele faleceu devido ao uso excessivo. “Esses dois casos me deixaram muito impactado, mexeram muito comigo. Eles são dois de muitas histórias que ouço diariamente. É de cortar o coração.”  

O professor conta sobre como a creche lida com crianças em situações de extrema vulnerabilidade e destaca a necessidade de tratá-las com muito carinho, paciência e empatia. Ele afirma que é preciso ouvir as crianças e estar disponível para elas, sempre dando suporte e atenção: “Nós, do Quintal da Criança, vemos nosso trabalho como uma missão. Esse trabalho se estende além das paredes da creche”. Eronildo menciona que o projeto se esforça para fazer os jovens se sentirem pertencentes e capazes de tudo. Eles têm como objetivo abrir os olhos dessas crianças para que elas se vejam como cidadãs e, acima de tudo, amadas.  

Ele também faz uma crítica à carência de investimento feita pelo governo para o resgate e educação de crianças vulneráveis. É necessário haver mais creches e escolas com o mesmo propósito do Quintal da Criança, com funcionários engajados e dispostos a fazer a diferença, e com uma boa proposta pedagógica; Eronildo completa seu argumento dizendo que a necessidade de haver ONGs como essa, se dá pelo fato do Estado não oferecer estrutura e suporte suficiente para acolher a totalidade de crianças necessitadas. Ele diz acreditar que as atitudes dele e de outros funcionários da creche possam tocar o coração das crianças e confortá-las; ele crê que seu trabalho, por mais complicado que seja, vale a pena ao ver esses jovens mudando, ficando cada vez mais felizes e se sentindo acolhidos. “Com amor podemos fazer a diferença na vida dessas crianças”, finaliza o docente. 

UTILIZAÇÃO DE IA

Autoria humana exclusiva

Este conteúdo é integralmente de autoria humana, sem uso de Inteligência Artificial em nenhuma etapa da produção.

Giulia Nakamura

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