sexta-feira

13-junho-2025 Ano 1

Futebol sul-americano: paixão, ódio e intolerância nas torcidas

Em um continente marcado pelo fanatismo ao futebol, a paixão perde seu espaço para a violência e o ódio generalizado entre as torcidas.

Por Caio Cerf Silva, Caio Berringer, Daniel de Melo, Giovani Valota Cortez e Gustavo Mota

Na América do Sul, o futebol vai muito além de um simples jogo, ele é uma linguagem social profunda que revela identidades, paixões e conflitos históricos. Nas ruas, nas redes sociais e nos debates públicos, o futebol funciona como um espaço simbólico de pertencimento e resistência, especialmente para comunidades marginalizadas. Para muitos, o time de futebol é mais que um clube: é memória, herança e um dos poucos territórios onde se sentem reconhecidos. No entanto, essa paixão intensa, que poderia ser fonte de união e celebração, frequentemente se converte em palco de agressões, xenofobia, racismo e intolerância. O amor pelo clube se transforma em trincheira identitária, onde a valorização do próprio grupo exige a exclusão e a hostilização do “outro”. Assim, o que deveria ser um espetáculo de rivalidade saudável acaba normalizando o ódio e a violência, criando um ciclo perigoso que alimenta ressentimentos sociais mais profundos.

Entrevistado com exclusividade pela Agenzia, Pablo Perantuono, jornalista, escritor e pesquisador argentino, destaca que as torcidas organizadas são, muitas vezes, compostas por públicos marginalizados e de grandes carências emocionais: “As torcidas são compostas por públicos mais marginais, com mais carência socioafetiva. O clube de futebol se transforma em um alicerce emocional, uma forma de existir”, diz Perantuono, que é especialista em torcidas organizadas, especialmente em “barras bravas argentinas”.
O jornalista, que é um dos co-autores no livro La fiesta más grande del mundo (com crônicas que falam do tricampeonato da Argentina de Lionel Messi), enfatiza que essa intensidade do torcedor traduz a importância que o time tem na vida dele. Quando se ama com tamanha profundidade, qualquer ameaça, ainda que simbólica, ao objeto de afeto é percebida como um ataque pessoal. Ou seja, a derrota deixa de ser apenas um resultado. É uma ferida. E a vitória, uma forma de vingança.

”O futebol é um tipo de manifestação onde os sentimentos se intensificam, muito pelo fato de que há um “ingrediente” muito influente, a competição, o ganhar ou perder. Portanto, a busca da vitória significa sempre estar diante de um inimigo, e esse inimigo é o rival”, afirma Perantuono. Esse fenômeno revela a íntima relação entre paixão, identidade e marginalidade, e também a base sobre a qual cresce o ódio direcionado aos adversários, que vai além da simples rivalidade esportiva.

Violência: um ritual de lealdade

Perantuono chama atenção para a ambiguidade dentro das torcidas organizadas, que são, ao mesmo tempo, espaços de afeto e de violência. A violência em especial a física, ocupa uma função central: “As brigas são uma experiência constitutiva desses coletivos. O confronto físico é um rito de adesão e pertencimento, onde se prova o compromisso e a valentia”, afirma Perantuono

Ou seja, a violência não é um acidente ou um desvio, mas um componente ritualístico da identidade dos grupos. O confronto físico é um teste de coragem e uma forma de demonstrar lealdade ao coletivo. Essa dinâmica torna muito difícil que esses grupos se desvinculem da cultura do confronto, que se perpetua e se naturaliza dentro das torcidas.

Histórico de conflitos

Na final da Copa Sul‑Americana de 2017, vencida pelo Independiente(ARG), o estádio do Maracanã foi palco não apenas da disputa esportiva, mas de uma escalada de vandalismo e violência entre torcidas. Antes mesmo do apito inicial, cadeiras foram arrancadas, e torcedores do Flamengo e do time argentino se enfrentaram com gritos, arremessos e agressões. O resultado foi um saldo de vários feridos, marcas no estádio e nas memórias. Aquele episódio demonstrou como a cultura do confronto está entranhada nas arquibancadas e além delas: o rompimento de estruturas físicas era um símbolo da ruptura social, expressando o desprezo pelo rival, consolidando a violência como elemento central da identidade torcedora – um ritual de reafirmação que legitima a hostilidade em nome da paixão.

Já em novembro de 2023, na véspera da final da Libertadores, torcedores de Fluminense e Boca Juniors protagonizaram uma briga generalizada na praia de Copacabana. Por volta das 17 horas, grupos se encontraram perto da “fan zone” montada pela Conmebol. Rapidamente a situação escalou em socos, arremessos de objetos e uso de gás de pimenta e balas de borracha. Dois argentinos e um brasileiro foram detidos, e vítimas relataram ofensas racistas e agressões físicas, incluindo cenas de correria e tumulto. Esse conflito revelou como o espaço público se torna extensão do campo de batalha entre torcidas, perpetuando a lógica de confronto ritualizado que reforça a identidade de grupo por meio da derrota do “outro”. 

Marginalização das Barras Bravas e Torcidas Organizadas

“Nas primeiras décadas do século passado, à medida que o futebol se populariza, se massifica, se regulamenta e se masculiniza, surgem os primeiros registros de ‘incidentes’, ‘episódios de violência’ e vítimas fatais. Essas crescentes ‘incivilidades’ levam grande parte da imprensa a começar a falar de ‘barras’ para coletivizar, com uma forte vocação moralizadora, os ‘torcedores fanáticos’ que protagonizaram episódios ‘antidesportivos’, ‘incultos’ ou ‘vândalos’”, escreve Felipe Bueno, em artigo do Jornal da USP.

Em 1925, o jornal argentino Crítica definiu as “barras bravas” como “energúmenos que só vão aos campos com o objetivo de manifestar seus baixos instintos”. A partir das décadas de 1950 e 1960, esses grupos começaram a se organizar hierarquicamente, influenciados por contextos sociais marcados pelo autoritarismo, exclusão política e novas formas coletivas de ser jovem.

No Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, às torcidas organizadas se desenvolveram inspiradas no modelo dos desfiles das escolas de samba da década de 1930, trazendo uma dimensão performática e coletiva para o futebol.

De acordo com o artigo feito por Nicolás Cabrera, alguns membros de torcidas como Los Piratas (Belgrano) e Ira Jovem (Vasco) participam de atos como intimidação, insultos e saques — formas de violência que vão além das brigas físicas. No entanto, os confrontos corporais ganham destaque por serem centrais na identidade desses grupos. Esse comportamento surge em contextos marcados por repressão política, ausência de participação democrática e por uma juventude que passou a adotar a ação direta e a violência como formas legítimas de pertencimento e expressão coletiva.

Racismo e xenofobia nas arquibancadas

Essas múltiplas formas de violência se organizam hierarquicamente, com o confronto físico ocupando um lugar privilegiado por ser altamente perceptível e simbólico para os grupos. O corintiano Antonio Naletto é daqueles torcedores que vão aonde o time vai. Mas nem sempre volta apenas com lembranças felizes das partidas.  Em 2022, numa partida contra o Boca Juniors(ARG), ele viveu o clima de hostilidade que pairava em Buenos Aires:

“Fomos tratados como bandidos. Revistados várias vezes, olhares desconfiados. Quando conseguimos entrar, já tínhamos perdido metade do jogo. E dentro do estádio, começaram os gritos. Macaco. Mono. Aquilo não era só provocação. Era ódio puro. Um ódio que me fez sentir pequeno”, lembra Antonio Naletto.

O relato de Antonio evidencia a naturalização do racismo e da xenofobia dentro das torcidas, onde ofensas de cunho racial são frequentemente vistas como “parte do folclore” do futebol, e não como atos de violência que causam trauma.

Durante o duelo entre Palmeiras x Cerro Porteño em 6 de Março de 2025, válido pela Conmebol Libertadores Sub-20, o atleta da equipe alviverde Luighi Santos foi alvo de insultos raciais no Estádio Gunther Vogel. Um torcedor da equipe paraguaia imitou um macaco em direção, que ao ser substituído foi alvo de cusparadas pela torcida. A cena ganhou o mundo.

Após o jogo, o atacante se emocionou ao conceder entrevista e demonstrou indignação com a equipe de jornalistas, que por sua vez ignoraram o incidente, questionando-o  apenas sobre a partida. “Não, não. É sério isso? Vocês não vão me perguntar sobre o ato de racismo que ocorreu hoje comigo? É sério? Até quando vamos passar por isso? Me fala, até quando? O que fizeram comigo é crime, não vai perguntar sobre isso?”

Aquele jogo já estava tenso, antes mesmo do apito inicial. O palmeirense Guilherme Vidal lembrou da hostilidade policial. “Os torcedores foram obrigados a entrar no estádio quatro horas antes da partida, passando por cinco revistas minuciosas e um teste de bafômetro com tolerância zero pois senão, não seriam autorizados a entrar no estádio”. Ele afirmou que os policiais estavam se portando de maneira agressiva. Em qualquer oportunidade, desferiram agressões físicas e morais aos torcedores palmeirenses presentes no Estádio Gunther Vogel. Na entrada ao jogo, foi relatado que não houve mais conflitos, pois os torcedores locais notaram que os brasileiros estavam em postura pacífica e que apenas foram prestigiar o seu clube do coração. “Não viemos aqui para fazer bagunça”, lembra Guilherme Vidal.

Tribunas refletidas no campo

Em maio de 2025, no confronto que selou a fase de grupos da Conmebol Libertadores, o clima tenso dentro do estádio do MorumBIS ultrapassou os limites do que se pode chamar de rivalidade esportiva. O lateral venezuelano Miguel Navarro, do Talleres, acusou Damián Bobadilla, volante paraguaio do São Paulo, de xenofobia. De acordo com Navarro, o adversário o chamou de “venezuelano morto de fome”, insulto que o levou às lágrimas ainda em campo e gerou grande comoção. A partida foi momentaneamente paralisada por 7 minutos. Porém, por decisão contrária ao que solicita a Fifa, o árbitro chileno Piero Maza decidiu prosseguir com o jogo. 

Navarro, abalado, registrou boletim de ocorrência e prometeu levar o caso até que haja consequências para o atleta do São Paulo. Situações como estas se repetem com frequência durante os confrontos internacionais na América do Sul, especialmente em torneios como a Libertadores da América e as Eliminatórias da Copa do Mundo, criando um ambiente hostil e perigoso para torcedores negros, estrangeiros ou qualquer um considerado “diferente”.

A rivalidade sul-americana, como no clássico entre Santos e Peñarol na final da Libertadores de 2011, carrega um histórico de provocações que extrapolam o jogo. O que deveria ser um embate esportivo de alto nível entre dois dos clubes mais tradicionais do continente acabou marcado por cenas lamentáveis. Após o apito final que confirmou o título do Santos, brigas generalizadas tomaram conta do gramado da Vila Belmiro, com jogadores trocando socos, empurrões e acusações, enquanto torcedores inflamados invadiam o campo.

O clima hostil não surgiu do nada. Durante os dois jogos da final, o ambiente já era de tensão, com provocações entre atletas, dirigentes e imprensa dos dois países. Ou seja, o ambiente dentro dos vestiários acaba por refletir fora deles também. Essa disputa assumiu um tom nacionalista, quase como se estivesse em jogo algo maior que o futebol — a honra de um povo. Nesse contexto, o adversário deixa de ser apenas um competidor e passa a ser o “outro” que precisa ser derrotado e humilhado.

O preconceito nas redes sociais 

A cultura da violência nas torcidas é alimentada não só pelas próprias organizadas, mas também nas redes sociais. Expressões como “guerra é guerra”, “não tem que respeitar mesmo”, e “aqui é assim” legitimam a intolerância e demonstram a forma em que a violência está inserida nas rivalidades sul-americanas.Racismo, xenofobia, homofobia e outras formas de violência tornam-se “provocações permitidas” em nome da paixão pelo clube. Essa naturalização dificulta a conscientização sobre a gravidade desses atos. Segundo o antropólogo José Paulo Florenzano, em artigo publicado no portal Ludopédio, o futebol, especialmente nas torcidas organizadas, funciona como um território simbólico onde se projetam tensões sociais e identitárias. O confronto físico e moral é visto como rito de afirmação, e o “outro”,  o torcedor rival, passa a ser construído como inimigo. Assim, o ódio é legitimado como forma de pertencimento e expressão de compromisso com o grupo.

Hoje, com a popularização das redes sociais, o ódio e a intolerância ganharam um novo palco, que multiplica sua força e alcance. Gritos isolados nas arquibancadas transformaram-se em tweets, lives e discussões online.

Jogadores, árbitros, jornalistas e torcedores tornam-se alvos frequentes de ataques virtuais, com discursos agressivos que reforçam a tribalização, a intolerância e a banalização dos discursos de ódio online.

O anonimato da internet fortalece essas bolhas discursivas, onde o diálogo e a empatia são muitas vezes rejeitados e vistos como traição ao clube.

A psicologia do ódio 

O futebol sul-americano é movido por paixão, intensidade e uma rivalidade que ultrapassa os limites do campo. Em meio a cantos das arquibancadas e disputas históricas, um fenômeno recorrente chama a atenção de estudiosos da cultura esportiva: o prazer simbólico do torcedor em ter um “inimigo”

Especialistas observam que muitos torcedores demonstram uma satisfação em zombar do adversário, em celebrar a vitória não apenas como conquista, mas como humilhação do outro. Esse comportamento revela uma ambiguidade típica da cultura torcedora na América do Sul: o rival é rejeitado, mas também indispensável para dar sentido à própria identidade de torcedor.

“A rivalidade no futebol é uma extensão de antagonismos sociais mais amplos, como classe, raça e origem social”, explica o sociólogo Silvio Luiz de Almeida. “A mercantilização do esporte exacerba essas tensões, transformando o adversário em inimigo e a derrota do outro em uma vitória simbólica para o torcedor.”

Segundo especialistas, esse ciclo de ódio é profundo e enraizado em questões que vão além do futebol. Ele nasce da paixão esportiva, mas é alimentado por ressentimentos sociais, desigualdades históricas e processos de exclusão. Rivalidades entre clubes ou seleções muitas vezes carregam consigo estigmas culturais e até traços de preconceito.

Para o psicanalista Horácio Goes Amici, a dinâmica das rivalidades no futebol pode ser compreendida a partir das teorias de Melanie Klein. “Experiências de separação na infância podem levar a uma percepção do mundo como ameaçadora, resultando em atitudes de hostilidade e polarização, como as observadas em rivalidades esportivas”, afirma Amici.

Apesar do cenário preocupante, a rivalidade não está condenada. No entanto, cresce a urgência de transformar o ambiente do futebol em um espaço mais saudável e respeitoso, onde o amor pelo time não precise caminhar lado a lado com o ódio ao rival.

UTILIZAÇÃO DE IA

Uso Moderado de IA

Este conteúdo foi produzido por jornalistas, com o auxílio de Inteligência Artificial em diversas etapas, tais como IA utilizada de forma auxiliar na redação, na revisão textual, na checagem.

IAs Utilizadas: ChatGPT

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