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14-junho-2025 Ano 1

Cultura do silêncio: onde os surdos podem ver e sentir para ouvir

O universo cultural se expande cada vez mais no Brasil com as redes sociais e a internet. A falta de inclusão dos surdos, porém, ainda é um obstáculo considerado irrelevante por muitos.

Por Fábio Barreto, João Renção, Marina do Val e Miguel Deotti

Imagine um mundo onde você não pode ouvir sua música favorita ecoando nos fones, as falas memoráveis de Star Wars no escurinho do cinema ou os sons envolventes de uma exposição em um museu. Experiências culturais, cada vez mais ricas, diversas e “barulhentas”, estão em constante expansão, buscando alcançar todos os cantos do mundo com sua energia vibrante. Mas uma minoria é deixada de lado: os surdos. Por que a inclusão dessa comunidade ainda é tão limitada? A acessibilidade, como a simples presença de legendas em filmes nacionais como “Ainda Estou Aqui”, não é uma prioridade garantida? Como os jovens podem vivenciar as artes se muitas delas celebram o som e o direito básico deles de acesso ainda é negligenciado, excluindo-os de experiências que deveriam ser universais?

Os filmes dublados são um pouco complicados de entender o que falam por conta dos personagens que se mexem ou viram de costas, dificultando a leitura labial.

Guilherme Lescano de Almeida, 18 anos.

Guilherme é um surdo oralizado (pessoas com a audição reduzida ao nível parcial ou total que sabem ler, escrever ou falar de forma quase fluente), morador do bairro Vila Alpina, localizado em São Paulo. Para conversar com ele, as perguntas da reportagem da Agenzia foram realizadas de maneira clara, priorizando o movimento dos lábios. O jovem se comunica por leitura labial. Apesar de usar o aparelho auditivo, ele tem dificuldades de captar um som específico em lugares públicos. O dispositivo capta todos os tipos de sons em vez de isolar um em específico. A partir disso, Guilherme entendeu todas as perguntas, e as respondeu tanto em Libras como em Português.

“Eu acho que todos os filmes precisam ter legendas ou intérpretes para surdos. Os filmes nacionais, por exemplo, não tem, mas deveriam. Eu, particularmente, prefiro as legendas.” disse Guilherme Lescano de Almeida. Os recursos de acessibilidade em espaços culturais podem variar dependendo das apresentações, como legendas, intérpretes ou aplicativos. A implementação dessas ferramentas melhora a experiência dos surdos, permitindo que consumam e interajam com o conteúdo apresentado.

surdos em frente ao cinema com filmes em cartaz atrás
Foto: Fábio Barreto / Reprodução: Projeto Agenzia

No caso do jovem e de muitos outros, abre-se um mar de possibilidades, uma vez que existem surdos com diferentes aspectos e atributos diferentes. Temos como imaginar a dificuldade maior que deve ser para os deficientes auditivos que não possuem alfabetização na Língua Portuguesa e dependem dos meios citados acima.

A variedade de atrações culturais para o grupo de surdos é totalmente limitada. Os filmes nacionais ainda são lançados sem legendas ou intérpretes de libras, o que não só dificulta o acesso da comunidade surda ao cinema quanto a toda a acessibilidade. A falta de profissionais em Libras, a língua que eles se comunicam, é um dos principais obstáculos para criar um ambiente acessível. Também a falta de respeito e negligência de adaptação no espaço, que resulta em experiências limitadas para os surdos.

A mãe de Guilherme, Marilene Lescano, 41 anos, apresenta os seus desafios e medos que refletem o sofrimento das famílias de jovens surdos para tentar incluí-los no meio sociocultural. Ela explica que o filho prefere escutar filmes dublados, mas nem todas as sessões oferecem acessibilidade, como legendas adaptadas ou janelas com intérpretes. “Meu maior medo é que o Guilherme se sinta sozinho ou excluído pelo mundo. Que ache que não pertence aos espaços por não ter a comunicação garantida.”

O rapaz já havia contado à sua mãe de situações em que foi alvo de piadinhas ou de olhares estranhos. São nesses momentos que Marilene procura desempenhar seu papel como mãe: “Que é reforçar o quanto ele é especial, forte e capaz. E continuar lutando por um mundo mais justo e acessível para ele — e para todos”.

Guilherme é fã de carteirinha dos filmes da Marvel e seu filme favorito do MCU é Vingadores: Ultimato. Ele não deixa de mostrar também seu herói favorito que é um dos mais amados pelos jovens: O Homem de Ferro. 

ChicagoMed, a série medicinal sobre a vida corriqueira dos médicos e enfermeiros e os casos de saúde realizados na Gaffney Chicago Medical Center, também é uma das favoritas para o jovem que sonha em cursar medicina.

Na música, Lescano, mesmo não podendo escutar as letras, a melodia, ou a harmonia, encontra um “jeitinho” de conseguir o acesso a esse universo. Em vez de ouvir, procura antes sentir: “Eu gosto muito de ouvir música! Gosto também de Marylin Monroe e sempre que quero ouvir, pego meu celular e encosto o pulso ou a mão na saída de som. Consigo me aproximar mais da musicalidade pelos seus padrões vibratórios”, contou.

Os surdos, como qualquer pessoa, são capazes de aproveitar da música, porém de uma forma diferente que é através das sensações das ondas sonoras. Vale ressaltar também que existem surdos que utilizam aparelhos  amplificadores para melhorarem sua experiência sensorial auditiva. Mas com este aparelho o volume de todas as coisas ao redor aumentam e em shows causa muito desconforto, como Guilherme vivenciou uma vez.

O jovem foi convidado e participou da Marcha para Jesus com o grupo da Igreja Batista Boas Novas. Interessado pela nova experiência, ele e um grupo de jovens da igreja foram para aproveitar um dia rodeado de muita música e diversão. Sua mãe o acompanha de perto em suas vivências e afirma que, daquela vez, seu filho em pouco tempo já estava ligando. Para contar sobre como estava feliz e aproveitando o momento? Não, Guilherme pedia para voltar antes do fim do espetáculo.

A mãe relata que o garoto se sentiu deslocado, como se não fizesse parte daquele momento. De acordo com Marilene, foi um processo doloroso ver seu filho com tanta vontade de viver algo e que, ao final de tudo, não conseguiu por conta da falta de acessibilidade:

 “Ele não é o problema — o mundo é que precisa estar mais preparado para recebê-lo”.

Comenta Marilene Almeida, a mãe de Guilherme.

De acordo com a genitora, se o show tivesse algum intérpretes de Libras, com certeza teria aproveitado muito mais. E como qualquer outra mãe, disse que o apoiaria se tivesse disposição de ir a algum espetáculo novamente.

Muitos jovens surdos sofrem com estresse e cansaço, perda de interesse e vontade de ir embora por conta de eventos que não estão preparados para recebê-los. A falta do intérprete ou meios de inclusão para deficientes auditivos são um desses fatores que contribuem para esse afastamento.

 

surdos jogando em local cultural de jogos no shopping
Foto: Fábio Barreto / Reprodução: Projeto Agenzia

De acordo com o IBGE, a população surda aproxima-se de 10 milhões de pessoas que possuem algum grau de deficiência auditiva, sendo 2,7 milhões delas sendo uma quantidade registrada de perda auditiva severa – onde o jovem Guilherme está inserido. Essa estatística revela a gravidade do problema estrutural que o Brasil enfrenta ao excluir 5% de sua população do acesso à cultura e ao lazer, ferindo um direito garantido pela Lei da Acessibilidade. Essa lei de 2000 determina que o Estado brasileiro deve eliminar qualquer obstáculo que restrinja o acesso do surdo à informação e, sobretudo, ao lazer. 

Apesar destes obstáculos, existem grandes eventos que contam com inclusão, como o Rock’n’Rio, que inovou a experiência de seus shows colocando uma plataforma vibratória sensorial para melhor imersão dos surdos, utilizando das caixas de som e suas ondas sonoras para incluir essas pessoas. Temos também como exemplo, as instituições Sesc e o Ines (Instituto Nacional de Educação de Surdos) trabalhando com atividades e projetos audiovisuais que são de grande relevância para o crescimento deste grupo.

Não podemos esquecer do trabalho dos profissionais nessa história. A professora de Libras da Faculdade do Litoral Sul, Karina Sales é uma das poucas intérpretes que atuam na área e que, além disso, consegue dedicar sua vida em prol desse ensino, espalhando a cultura para o público. A educadora já atuava como intérprete, antes de se aprimorar em Libras e atualmente realiza trabalhos de tradução em shows musicais. Para ela, a acessibilidade não é uma questão apenas daqueles que necessitam dela, mas que abrange todos. 

Até o reconhecimento e a implementação da linguagem de sinais houve uma enorme lacuna de tempo que causou no aumento drástico da exclusão para se incluir, ocorrendo uma diminuição das chances e das oportunidades para crianças, adultos e jovens. A pesquisadora Maura Corcini retoma seu trabalho científico realizado para a revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos sobre a forma de vida dos surdos. Até o século 17, a surdez não era mundialmente reconhecida como característica de um grupo constituído por diversas pessoas. Até 1960, a língua gestual não possuía legitimidade pela Constituição.

A tecnologia como os aplicativos que traduzem do português em libras (como o HandTalk) ou um sistema de legenda automática em streaming têm, hoje, o poder de elevar o patamar da comunicação e inclusão dos surdos. O uso da realidade virtual também pode trazer uma experiência imersiva nas necessidades para esse público, permitindo que interajam com o conteúdo de uma maneira inovadora. E diversas pessoas irão argumentar sobre a existência de legendas escritas, que de fato ajudam bastante, porém ainda tendem a ser confusas para surdos, que não conseguem acompanhar as legendas junto da imagem. 

A opção de janela de libras (intérprete de Libras contínuo na tela) é um ótimo meio tecnológico para eles, entretanto muitas delas ainda são muito pequenas, dificultando o entendimento do programa, já que o surdo precisa entender os movimentos das Libras, interpretar, traduzir e assistir o programa ao mesmo tempo. E o ideal é que a janela de Libras fique no meio da tela, o que exigiria um outro tipo de configuração para contemplar esse público. 

  A janela é pouco vista na televisão aberta, mas em tempos de eleições existe uma preocupação maior em liberar a acessibilidade para os surdos. E, por mais que sejam usados, os quadros ficam em uma posição inadequada. Os surdos não conseguem acompanhar a legenda em libras, já que todas emissoras têm seu próprio estilo de legenda. 

 É difícil encontrar representatividade na televisão, fora de campanhas políticas e telejornais. Por isso, o ideal é que a telinha das libras exista o tempo todo e possa ser optativa, para que todos tenham a oportunidade de entretenimento.

Mesmo com a Lei 11.652/2008, que dá livre direito à informação e à livre expressão do pensamento e da comunicação para todo cidadão brasileiro, as mídias televisivas tradicionais ainda optam pela ignorância das condições dos milhões de surdos no acesso às informações.

Um progresso foi a Lei 10.436/2002, que veio e se tornou encarregada dos devidos conhecimentos gerais tratados sobre a Língua Brasileira de Sinais, que foram reconhecidas como uma língua própria.

Dados coletados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) revelam que, dos 47,3 milhões de alunos do ensino de educação básica, 61.594 possuem algum tipo de deficiência relacionada à surdez. Por mais que 85% dos colégios com estudantes surdos possuam seus tradutores e intérpretes de Libras, o Brasil ainda não oferece o direito à educação plena para todos.

É necessário ter em mente os preconceitos sofridos e a forte discriminação dentro do grupo, gerando pensamentos de inferioridade. Esse grupo de não ouvintes merece ter o acesso ao lazer e cultura tanto quanto as pessoas ouvintes. Acessibilidade não é uma questão individual, mas que abrange todos nós.


Foto: Fábio Barreto / Reprodução: Projeto Agenzia

UTILIZAÇÃO DE IA

Autoria humana exclusiva

Este conteúdo é integralmente de autoria humana, sem uso de Inteligência Artificial em nenhuma etapa da produção.

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