sexta-feira

6-junho-2025 Ano 1

Crimes de ódio: o aumento da violência contra as mulheres

A série Adolescência, da Netflix, tornou público um assunto antes velado: o aumento dos crimes de ódio contra mulheres em meio a uma cultura misógina. Como enfrentar esse tipo de violência? 

Por Enrico Todescan, João Pedro Leite, Luiza Dias, Maria Eduarda Rodrigues e Vinicius Moreti 

Na fotografia acima, vemos o personagem principal da série, Jamie, de pele clara e cabelos loiros, vestindo uma camiseta clara por baixo de uma jaqueta azul com linhas brancas na área dos ombros, com um olhar fixo em direção à câmera.
Jamie, personagem principal da série Adolescência, da Netflix, com um olhar fixo. Foto: Divulgação/ Netflix

A Agenzia foi até o Colégio Sagrado Coração de Jesus, no bairro da Pompeia, em São Paulo, no último 30 de abril. A proposta era assistir a uma aula do itinerário de Filosofia, que utilizava como base a série Adolescência, da Netflix. No encontro, foram debatidos os episódios assistidos em sala e a importância da psicologia nesses casos. A reportagem, então, propôs aos alunos uma conversa mais reservada sobre crimes de ódio contra mulheres. Rapidamente, várias mãos se levantaram — a maioria sendo de meninas — demonstrando interesse em participar.  

Em um local mais silencioso, o que proporcionou um ambiente adequado para as conversas, surgiram respostas variadas e complexas. Os alunos Francisco, Alice, Mateus e Lívia (nomes fictícios para preservar a identidade deles), do 1º ano do ensino médio, não se furtaram a refletir sobre a realidade em que vivem e os desafios que os jovens enfrentam. Todos reconhecem que o destaque que a série Adolescência ganhou nos últimos tempos acendeu um alerta sobre um assunto urgente e inadiável: o que explica a violência contra mulheres praticada por homens? A reportagem ouviu também a psicóloga Francine Teixeira para pontuar algumas reflexões levantadas. 

A origem

Francisco, um garoto de 16 anos, de mais ou menos 1,80m de altura, com cabelos castanhos levemente ondulados, tem uma resposta à questão proposta pela reportagem: “Tem muito a ver com a criação da pessoa. Às vezes, ela é criada com um ódio dentro dela”. Tanto o comportamento compulsivo mostrado na série, quanto atitudes semelhantes observadas em adolescentes — em sua maioria, meninos — vêm de casa. É comum de se ver ou escutar histórias em que o pai exerce um certo “domínio” no ambiente familiar. Essa necessidade de se impor, demonstrar autoridade como o “dono da casa”, influencia diretamente a forma como os jovens enxergam e projetam a figura masculina: alguém que deve sempre deter o controle da situação, aumentando o tom de voz ou, em alguns casos, recorrendo ao ataque físico.  

Normalmente, mulheres que se sentem acuadas por tal ação do homem tentam amenizar a situação com gestos de carinho ou frases de aceitação – porque, em muitos casos, o homem só se acalma quando “consegue o que quer”. Esse padrão está presente na série. O comportamento do garoto, o protagonista Jamie, ao querer se impor diante das mulheres, como faz diversas vezes com a psicóloga, reflete o modelo que ele vivencia diariamente. No episódio em que o pai é o destaque, isso se torna ainda mais evidente: ao gritar com a esposa, ou até mesmo com a filha mais velha, existe uma clara tentativa, por parte dele, de impor poder dentro da casa – e ao que tudo indica, esse comportamento não é uma novidade.  

“A maldade contra as mulheres é consequência de longos anos de machismo que a gente tem na história, então isso é uma questão que já está naturalmente na cabeça das pessoas, o que é um pensamento errado. E a questão de agressões, assédio ou até mesmo o que aconteceu na série vem de um papel de superioridade visto pelos homens” afirma Alice, uma garota de 15 anos, de estatura baixa, cabelos morenos, com sardas entre bochechas e nariz. “Cada vez mais as pessoas têm menos empatia e mais machismo.” 

O medo do cotidiano

Lívia é uma jovem de 15 anos, com cabelos loiros levemente ondulados, de altura mediana, engajada com a causa feminista, relata ter convivido com uma realidade dura e marcante. Uma pessoa de seu convívio, que trabalhava em sua casa, foi vítima de agressões físicas por parte do marido e que, por sorte, não acabou em tragédia. A vítima enfrentava dependência financeira por parte do cônjuge, e não tinha para onde ir, o que a impediu de colocar um ponto final naquele momento. Mesmo após a denúncia, ela não teve sua situação resolvida e ele saiu impune, mas felizmente ela conseguiu se mudar e romper definitivamente com o agressor.  

Segundo a ONU Mulheres, mais de 70% das mulheres no mundo já sofreram algum tipo de violência física ou sexual por parte de homens, frequentemente parceiros íntimos. No Brasil, dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2023 revelam que uma mulher é vítima de feminicídio a cada seis horas, crimes quase sempre motivados por uma percepção de posse e honra masculina ferida.  

Em relação à série da Netflix, Lívia conta como se sentiu ao assistir a vítima sendo atacada: “Eu acho que o que toda mulher sentiria ou sentiu ao assistir, que é se colocar no lugar dela. Como mulher, a gente sente medo de sair na rua e ser assediada ou ser estuprada, ou sofrer qualquer agressão mesmo dos nossos parceiros”. Há um sentimento de sororidade, diz ela: “Isso é uma coisa comum entre todas as mulheres, a gente sente a dor umas das outras”.  

A psicóloga Francine Teixeira, especializada na infância e adolescência, comentou sobre o papel da psicologia nesses casos. “É um pouco mais trabalhoso e difícil. O trabalho é conscientizá-la de que realmente ela é a vítima, de que não merece passar pelo que passou e que isso não é culpa dela. O primeiro movimento terapêutico é esse: tirar essa inversão de papéis”, explica. “Com o agressor o trabalho é bem complicado, muitas vezes em decorrência das referências que eles têm de mulheres (relações que foram conduzidas ao longo da vida como mãe, avós etc.). Nós só conseguimos um bom resultado quando a própria pessoa violenta identifica que ela tem um problema.” 

Ficção ou alerta?

O perigo pode morar onde menos se espera: atrás de uma tela. Com o contato cada vez mais precoce entre adolescentes e o mundo da internet, comunidades virtuais têm influenciado os comportamentos e visões de mundo desse público jovem consumidor do digital. Nessa fase da vida é comum que os jovens busquem pertencimento, o que os torna mais suscetíveis a ideologias distorcidas. Mateus, um jovem de 15 anos, que usa óculos e tem cabelos castanhos claros, destaca que diversos casos desse tipo têm origem no bullying e que acha um assunto pertinente, muito próximo de sua realidade. 

“Além do crime, o que mais chama atenção na série é a maneira com que esses adolescentes são conduzidos no âmbito escolar. Há uma negligência e um descontrole. Portanto, os pais devem assistir e devem observar quando os filhos chegam da escola de certa forma mais calados, para saber que isso realmente acontece e que não deve ser banalizado, naturalizado e nem normalizado”, aconselha a psicóloga Francine.  

Francisco comentou que indicou a série para os pais, mas que eles não assistiram por completo. Sua mãe começou e não finalizou, e seu pai nem chegou a começar. Francine não recomenda que os adolescentes de 13 a 14 anos assistam Adolescência desassistidos. A série traz uma abordagem mais subjetiva, sem uma finalização concreta. A especialista aponta que já há um risco real de que alguns homens passem a subestimar as mulheres, justificando-se por supostas necessidades sexuais, independentemente de assistirem ou não a série: “Acho uma lógica perigosa e raramente é problematizada de forma profunda.” Ela completa que, ainda hoje, o prejuízo social e emocional em casos de exposição e abuso costuma recair sobre as mulheres. É fundamental, diz Francine, que os homens entendam que os direitos femininos não dependem de crenças pessoais, culturais ou religiosas, e o respeito deve ser inegociável.” 

Um problema real

Ao finalizar, Francine que está acostumada a lidar com crianças e jovens em seu consultório responde se vale a pena utilizar a produção da Netflix: “Eu, como profissional, não cheguei a utilizar como ferramenta, mas como um conteúdo a ser discutido dentro do consultório.” Ela ainda destaca que não utilizaria como ferramenta educativa para pais e professores em relação ao ódio ou ao machismo, por exemplo, mas na questão da empatia, da coletividade, da lealdade e do olhar para com o outro: “Eu utilizaria o bullying, o desrespeito, a desordem, agressividade e a desorganização da escola da série, que refletem o falho sistema educacional, para mostrar que isso pode acabar em situações descontroladas.” 

Os quatro jovens entrevistados concordam que as escolas poderiam desempenhar um melhor papel enquanto instituição de ensino já que exercem um papel ativo na conscientização dos alunos. Para os meninos, em particular, é essencial que os princípios de respeito e igualdade sejam ensinados de forma prática e constante, não somente quando há uma palestra ou em algum evento específico.  

Além disso, esse exemplo deve ser encontrado em seus profissionais. Afinal, além de suas casas, é na escola que esses jovens passam grande parte do tempo, tendo não apenas seu conhecimento moldado, mas também sua visão sobre o mundo e sobre o outro. Alice, uma garota de 15 anos, de estatura baixa, cabelos morenos, com sardas entre bochechas e nariz, afirma que essa desigualdade é vivenciada no ambiente escolar no âmbito em que os meninos podem utilizar a quadra durante os intervalos de sexta-feira, mas as meninas não. Ela completa: “A gente não tem essa abertura de pedir para a escola porque a escola mesmo não faz nada. Existe sim um machismo enraizado quando eles colocam mais diversões ou áreas de lazer para os homens porque acham que eles vão gostar mais de jogar bola, futevôlei ou futmesa, e consideram esses esportes mais masculinos, sendo que não é verdade.”  

Para as meninas, é fundamental que a escola ofereça um ambiente acolhedor e seguro – um espaço em que esses episódios de ódio não sejam tolerados, e que, caso ocorram a equipe esteja disponível e confiável para acolher, ouvir e agir da melhor forma possível, principalmente em relação à vítima.  

Cinco jovens que participaram das entrevistas, três meninos e duas meninas, intercalados, virados para uma parede coberta de azulejos brancos, com uma janela de vidro ao centro. Quatro deles vestem uma camiseta preta escrito “Sagrado” na barra do uniforme, e uma garota veste uma camiseta azul.
Alunos do Colégio Sagrado Coração de Jesus, que foram entrevistados. 

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