Rap e funk emergem das comunidades como potentes expressões de resistência e identidade, transformando realidades, revelando talentos e desafiando preconceitos
Por Arthur Mesquita, Henrique Moura, João Frederico, João Perez e Pedro Pereira
A ascensão dos movimentos rap e funk no Brasil está profundamente ligada a fatores sociais, culturais e históricos. Ambos surgiram como formas de expressão das comunidades, especialmente nas grandes metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, e cresceram como vozes potentes de resistência e identidade.
Rap e funk enfrentaram e ainda enfrentam preconceito por parte da mídia tradicional e das instituições. O rap brasileiro, fortemente influenciado pelo hip hop norte-americano, se destacou desde os anos 1980 como uma ferramenta de denúncia contra o racismo, a violência policial, a pobreza e a exclusão social. Grupos como os Racionais MC’s traduziam o sentimento de opressão e abandono que viviam as comunidades. Já o funk chegou em outro momento, mas não deixou de ser criminalizado, especialmente nas décadas de 1990 e 2000. Muitas vezes foi tratado como “caso de polícia”.
A produção independente, a ocupação de espaços públicos (como os bailes de rua nas comunidades e os saraus) e a circulação de conteúdo pela internet foram estratégias adotadas para a disseminação dos dois movimentos, que puderam crescer com tantos obstáculos pelo caminho. Apesar da origem marginalizada, tanto o rap quanto o funk ganharam projeção nacional e internacional. Hoje, artistas de ambos os gêneros ocupam os principais palcos do País, colaboram com grandes nomes da música e influenciam moda, linguagem e comportamento.
Para trazer uma perspectiva sobre o impacto do rap e funk nas comunidades, Agenzia entrevistou artistas, ouvintes e organizadores de eventos em prol da cultura. Entre as pessoas ouvidas, Clara Lima, uma das vozes mais potentes da cena nacional. Mineira, nascida e criada em Belo Horizonte, ganhou destaque ainda jovem nas batalhas de rima. Nesse espaço, revelou não só seu talento, mas também fez dele uma escola para sua formação artística e pessoal. Sua trajetória é marcada por letras que falam das vivências periféricas, das lutas e dos sonhos da juventude das quebradas. As canções mostram como o rap pode ser uma ferramenta poderosa de expressão, resistência e transformação social.

A arte enquanto transformação social
“A música está sempre no dia a dia do jovem de favela, e vejo que muitos se sentem representados pelas letras, muitos se inspiram nas letras pra ir atrás de uma melhora de vida. Acho que a maior forma de impacto do Rap e do Funk nas quebradas é sendo meio de conversa, informação e inspiração pra juventude, tá ligado?”, pontua Clara Lima.
Fazer parte do universo da música pode representar para jovens das comunidades a saída da realidade sofrida que a grande maioria vive. Entre as iniciativas sociais, a rapper destaca o “Lá Da Favelinha”, um projeto no aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, local onde a artista nasceu. O projeto não apenas induz os participantes a entrarem em contato com rap e funk, mas também, com outros gêneros musicais. Ele foi idealizado por Kdu Dos Anjos, um filho da cultura de rua de BH. Kdu começou nas batalhas de rap e nos saraus, e o projeto “Lá da Favelinha” era uma oficina de rima. Hoje é um Centro Cultural independente e autogerido pelos moradores do aglomerado.
Além do “Lá na Favelinha (MG)”, existem muitos projetos semelhantes espalhados pelo Brasil, alguns exemplos são: Aleh Convida (SP), Projeto Guri (SP), Projeto Quarteirão da Música (SP), Projeto A Voz da Periferia (MG) e Escola de Música Favela Brass (RJ)
Movimentos como esses são importantes agregadores de cultura nas comunidades, fazendo com que jovens consigam se introduzir na arte (não apenas rap e funk) e tenham a chance de se destacar no meio. Em alguns casos, revertendo a situação de vulnerabilidade para uma vida mais estável.
É bem verdade que no passado as rodas culturais e batalhas de rima não tinham o mesmo impacto midiático dos dias de hoje. Porém, com a popularização do TikTok e ferramentas como o “Reels”, do Instagram, artistas podem ser visualizados por meio de pequenos vídeos. Ou seja, podem se tornar conhecidos.
A artista Clara Lima falou sobre o processo de sair das batalhas para a produção de música:
“Desde as batalhas eu já escrevia algumas coisas em casa com o Chris MC (meu irmão) e certo dia pedi para o meu tio que me levasse ao estúdio. Comecei a gravar algumas músicas minhas, rapidamente fui convidada pelo Coyote para fazer parte do DVtribo, que é um grupo de rap com Djonga, Fbc, Hot&Oreia e partir dali me joguei na música de fato, e fui ficando cada vez mais ausente das batalhas. Em 2017 eu me “aposentei” das batalhas, e desde então estamos nessa correria do rap”.
Projetos Sociais nas comunidades
Além das batalhas, existem projetos sociais que visam a revelação de talentos periféricos que atuam de forma muito séria em prol da cultura nas comunidades. Um exemplo é o projeto musical “Aleh Convida”. Igor Baran, um dos idealizadores da missão, respondeu alguns questionamentos sobre a criação do projeto, relação com artistas periféricos e histórias de superação.

Igor destaca que a criação do projeto ocorreu após a percepção de seu pai de que muitos músicos da periferia estavam sendo impactados pela falta de oportunidades de trabalho, em meio à pandemia. Desse modo, surgiu a ideia de utilizar da própria estrutura musical para oferecer gravações profissionais e promover o reconhecimento desses artistas.
Além de proporcionar gravações de músicas de outros compositores, o Aleh Convida também incentiva a criação autoral. Muitos dos jovens participantes têm a oportunidade de lançar suas próprias músicas e colaborar em produções que são lançadas nas principais plataformas digitais, como o Spotify.
O especialista em políticas públicas ressalta histórias de superação ocorridas no projeto. A mais marcante foi a de Giovanna Rocha, jovem moradora do Jardim da Conquista, em São Mateus, na zona leste paulistana. Ela destacou que participar do AlehConvida foi um “divisor de águas” para ela, já que as gravações profissionais são muito caras e inacessíveis para muitos jovens da periferia. Graças ao projeto, hoje ela canta em algumas escolas de samba de São Paulo e conseguiu aumentar a sua renda como professora de música, já que o material que ganhou do projeto possibilitou cobrar mais caro em suas aulas particulares.
Reconhecimento do funk e rap cultural
“O Rap e Funk estão num momento foda, de crescente, de acesso que há alguns anos não tinha, mas ainda assim, enfrentando muito preconceito e portas fechadas. Que nada mais é do que o reflexo da sociedade em que vivemos, dos políticos que hoje atuam e até lei anti-artista criam, mas nunca se importaram com projetos culturais, acesso e lazer para as favelas!”, protesta Clara Lima.
Quando não há o incentivo à cultura por parte das organizações, o próprio povo acaba por se mexer, criando as rodas culturais e batalhas de rima. São os movimentos independentes que têm papel vital na revelação de artistas talentosos e futuras vozes da comunidade.
Na quinta-feira 1º de Maio, a reportagem da Agenzia esteve na Batalha de Rap do Ana Rosa para entender mais sobre a organização do evento, a visão dos artistas e mostrar a atmosfera de uma das batalhas mais respeitadas do país.

Primeiro round da Batalha do Ana Rosa sendo disputado pelo campeão da noite, Kroy MC. Foto: Henrique Moura/ Agenzia.
Perspectiva de um jovem da comunidade
Leonardo de Melo é morador da Vila São Pedro em São Bernardo (terceira maior comunidade do estado de SP) e frequenta a Batalha do Ana Rosa, ele destaca a importância das letras do rap e funk na exposição da realidade das periferias, e enfatiza que esse tipo de música impacta positivamente na auto-estima dos desfavorecidos.
A música “Desde Menor” do rapper Kyan, rapper com origem periférica na baixada santista foi destacada por Leonardo como uma música inspiradora, que marcou sua vida em momentos difíceis:
“A vida proporcionou problemaE coube a mim encontrar solução
Nasci devendo, careca e sem dente
Mas com talento e uma opção
De ser vencedor
De história triste eu já tenho um monte
E tem gente que tem mais
E vive com um sorriso gigante”
Trecho da música “Desde Menor” do rapper Kyan.
O morador da Vila São Pedro se emociona ao dizer que a trajetória de sucesso dos “artistas do gueto” os inspira a ter mais coragem de seguir seus sonhos e batalhar por eles, sendo uma prova de que os jovens periféricos são capazes de alcançar aquilo que almejam apesar das dificuldades impostas.
Influência de artistas na valorização dos jovens da periferia.
Artistas como Kyan e MC Hariel, dois nomes em evidência, abordam temas como superação, desigualdade, racismo, exclusão social e conquistas pessoais, trazendo orgulho para quem se vê invisível na sociedade. Ao narrar sua própria trajetória de dificuldades e vitórias, as canções funcionam como espelhos positivos, mostrando que os jovens da periferia têm valor, voz e potência.
Tanto Kyan quanto MC Hariel falam abertamente em suas letras sobre respeito próprio, ambição, autoestima e liberdade, tudo isso dentro de uma estética que valoriza a cultura periférica: o jeito de se vestir, de falar, de sonhar. Eles quebram estereótipos e reafirmam que não é preciso mudar suas origens para conquistar respeito. Esses artistas ocupam espaços onde antes os jovens periféricos não se viam representados, e com isso ajudam a construir uma nova narrativa de pertencimento e orgulho da própria identidade.
Democratização do acesso a cultura nas periferias
A falta de cultura nas periferias é uma realidade que impacta o desenvolvimento social, educacional e emocional da população, especialmente dos jovens. Essa carência não significa ausência de talento ou interesse, mas a falta de acesso a equipamentos culturais, investimentos públicos e oportunidades de expressão artística.
Nas periferias, é comum encontrar poucos centros culturais, bibliotecas, teatros, escolas de música ou dança, enquanto regiões centrais das cidades concentram esses espaços. Essa desigualdade geográfica e social faz com que muitas vezes o contato com atividades culturais dependa do esforço individual ou de iniciativas comunitárias.
Marcelo Argôlo, jornalista e pesquisador musical baiano, com mais de dez anos de atuação no jornalismo cultural, enfatiza que o rap e o funk estão muito alinhados à cultura periférica, marcada por um processo de marginalização e desigualdade social que se apresenta de forma econômica, na relação de trabalho e nos valores pagos em salário. Isso acaba por se refletir na cultura, pois sem uma estrutura econômica para comprar livros, assinar streamings de filmes, ir ao cinema ou pagar condução para museus, o acesso à cultura é limitado
Diante dessas dificuldades, as populações periféricas desenvolveram seus próprios bens e manifestações culturais, como o movimento black nos anos 1970 no Rio de Janeiro (considerado o pai do funk) e o rap dos anos 1980 nos Estados Unidos. O rap e o funk, além de contribuir para a democratização do acesso à cultura, são promotores dela e resultados de um processo de resistência das populações periféricas. Eles retratam o cotidiano dessas populações e criam identificação, funcionando como manifestações culturais produzidas por e para essa população.
“Os artistas de rap e funk não estão preocupados em combater estigmas sobre a periferia. O foco deles está em criar espaços de sociabilidade, enfrentar desigualdades sociais e promover atividades nas comunidades, como batalhas de rima, bailes funk e ações educativas. Eles se preocupam mais com o cotidiano de suas comunidades do que com a imagem que a elite intelectual ou a mídia tem da periferia”, diz Argôlo.
Para os artistas de origem periférica, o combate direto à imagem negativa que muitos retratam não é prioridade. Eles preferem se engajar em ações concretas dentro da própria comunidade. Ou seja, os artistas criam cultura e resistência de dentro, em vez de tentar mudar a percepção de fora. Não deixa de ser uma crítica implícita à expectativa de que os artistas periféricos devem “melhorar a imagem” da favela para serem levados a sério.
Essa fala valoriza uma autonomia cultural, que não depende da validação da elite ou de intelectuais para ser legítima ou transformadora. Portanto, alimentar as relações sociais, a autoestima, resistência e a criatividade do povo periférico em seu dia a dia é o verdadeiro objetivo.
“Políticas públicas e espaços culturais fortalecem a música periférica ao profissionalizar artistas, oferecer formação técnica e criar oportunidades de circulação, como festivais e circuitos culturais”, afirma Argôlo.
Segundo o pesquisador, leis de incentivo e patrocínio público ajudam a consolidar um ecossistema mais justo, o que traz a representatividade musical que é essencial para a identidade de grupos marginalizados.
É isso que tem permitido que jovens se inspirem em artistas como Djonga e Clara Lima, reforçando a autoestima e o senso de pertencimento. “A música é hoje mais acessível graças à tecnologia e redes sociais, mas ainda há barreiras em festivais e canais comerciais. Valorizar estilos como rap e funk combate preconceitos culturais, amplia o olhar sobre as periferias e fortalece a diversidade na cultura brasileira”, finaliza o jornalista.
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