quinta-feira

5-junho-2025 Ano 1

Como a inteligência artificial ameaça o mercado da dublagem

A IA está ameaçando a existência dessa classe artística: entenda como os profissionais estão lutando para evitar o pior 

Por André Calil, João Paulo Faria, Paulo Siniscalchi e Talles Pariz 

estúdio de dublagem, microfone e fone de ouvido
O futuro incerto da dublagem – Foto: Talles Pariz/ Agenzia 

A inteligência artificial vem sendo objeto de diversos e intensos debates. Se por um lado mostra-se uma ferramenta útil para desenvolvimento de novas tecnologias e maior produtividade, por outro surge como grande ameaça a diversas áreas, como por exemplo a mídia e a educação. Os atores de voz, mais conhecidos como dubladores, são uma das categorias especialmente preocupadas com o futuro que se avizinha. 

O dublador Marco Antônio Abreu, que deu voz a personagens como Patrick Estrela, de Bob Esponja e Rick Grimes, de The Walking Dead, vai direto ao ponto: “Penso que a dublagem e o dublador passam, exclusivamente, a emoção através do seu tom de voz e existem emoções que apenas seres humanos são capazes de passar. Assisti a alguns trabalhos feitos com Inteligência Artificial e o resultado não ficou bom porque a emoção é essencialmente humana

A obra mencionada por Marco é o filme O Silêncio de Marcos Tremmer, uma produção uruguaia de 2024 lançada no Prime Video, que ficou viral no meio artístico por ter sido a primeira película da plataforma de streaming a ser dublado inteiramente por IA. O lançamento foi criticado, não apenas por profissionais da área, mas também por assinantes do serviço, conforme reportagem do jornal O Globo. A Prime Video já removeu a versão com vozes mecanizadas, mas alguns trechos ainda circulam nas redes sociais. Este fracasso reforça o argumento dos dubladores e demais profissionais da área do audiovisual. 

Dubladores com pouca experiência profissional e que ainda não conseguiram posição estável no mercado vêm com pessimismo o uso da tecnologia da IA, conforme relatou a iniciante Laura Paro: “A gente tem, como sociedade, medo porque é uma coisa desconhecida que a gente não sabe como vai crescer, que cresceu de um dia para o outro, que é assustador a capacidade dela e pensar que isso é só o começo”. 

Ainda analisando as possibilidades do futuro, há quem o veja de forma positiva, como o técnico de áudio de dublagem Daniel Marcelino: “Com o advento da IA generativa começou a se levantar a possibilidade de o cara (dublador) não precisar regravar. Se ele errar uma frase a IA pode completar isso para ele. Eu acho que não, isso beira o antiético, então esse tipo de coisa, pelo menos por agora e nem daqui a algum tempo, parece ser algo que possa acontecer”. 

Até mesmo aqueles que dominam a tecnologia, como o estudante de engenharia da computação Vitor Castro, reconhecem que ainda é cedo para esse tipo de diálogo. “As IAs estão evoluindo muito rápido, mas ainda são muito jovens para fazer muita coisa. Então tudo que é gerado por IA, principalmente nessas questões de arte e voz, caem em um vale da estranheza muito grande, elas precisam de mais tempo para poder se acertar”, afirmou.  

Uso responsável 

Os profissionais da área defendem que a inteligência artificial não deve ser algo que substitua o trabalho humano, mas usado como uma ferramenta que auxilia a produção.  “Isso, querendo ou não, já acontece. A gente já utiliza (IA) para limpezas de som, tanto na dublagem quanto em outras áreas do audiovisual, cinema etc. Existem alguns programas de edição de áudio que são para tirar alguns estalos de voz, estalos de boca, essas pequenas coisas que poderiam atrapalhar o áudio final”, completou Daniel. 

O uso de inteligência artificial assim já é uma realidade, como visto no Grammy Awards, famosa premiação de música dos Estados Unidos. A canção Now and Then, dos Beatles, ganhou o prêmio de Melhor Performance de Rock. Durante a produção da faixa, utilizaram uma IA para limpar os áudios gravados por John Lennon e George Harrison, de forma parecida como citado por Daniel. 

Contudo, o crescimento rápido desta nova tecnologia torna o futuro da profissão de dubladores, bem como de outras tantas categorias, uma grande incógnita. Para o dublador Marco Antônio Abreu, é preciso que haja utilização da IA de forma responsável, como ferramenta que auxilie a equipe de produção de dublagem, e não como meio de substituição de uma categoria profissional inteira. 

O tema ainda é muito novo e muito complexo para determinar algo, já que não se sabe ao certo como as IAs estarão daqui a um ano, menos ainda daqui a dez, quinze anos. Segundo reportagem da revista Veja, produções que utilizam inteligência artificial conseguem executar em 70% mais rápido o trabalho do que a dublagem feita com vozes humanas.  

Ameaça aos dubladores 

No Brasil, pesquisas apontam que a população prefere assistir a filmes dublados. Bom exemplo disto é o filme Homem Aranha: Sem Volta para Casa e a série 13 Reasons Why, da plataforma de streaming Netflix. Nas duas produções, mais de 80% da arrecadação veio das versões dubladas. Mas isso não reduz a ameaça aos dubladores. 

É neste cenário que se encontra o movimento Dublagem Viva, realizado por diversos dubladores como Fábio Azevedo (voz do ator Benedict Cumberbatch) e Robson Kumode (voz da personagem Sasuke em Naruto), que luta, com outros setores, pela criação de uma lei que regulamente o uso da IA. Em maio de 2024, um passo significativo foi dado quando o movimento conseguiu que seu manifesto chegasse ao gabinete da ministra da cultura Margareth Menezes. 

 Também setores do poder legislativo brasileiro já têm manifestado a preocupação com a regulação do uso de IA. O Projeto de Lei 2338, de iniciativa do senador Rodrigo Pacheco (PSD), visa regulamentar a IA no País, protegendo os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. Em dezembro de 2024, foi aprovado no Senado e encaminhado para a Câmara dos Deputados, onde aguarda deliberação. 

Lá fora, o tema também está em alta. Em meados de 2023, quando o sindicato da categoria de roteiristas dos Estados Unidos, bem como o sindicato dos atores de Hollywood, promoveram paralisações. A primeira durou 148 dias, ao passo que a segunda teve a duração de 118 dias. Tais greves atrasaram as produções de audiovisual e foram encerradas por um acordo realizado com a associação Alliance of Motion Picture and Television Producers, que representa as produtoras de cinema e televisão.  

Uma das principais reivindicações dos roteiristas era a de que a IA fosse utilizada tão somente como ferramenta de auxílio em pesquisas e facilitação de roteiros, sem, contudo, substituir o trabalho humano. Logo após o acordo, houve o lançamento da campanha Real Voices, capitaneada pela associação United Voices Artists, que representa atores de voz no mundo todo, visando a regulação do uso de IA para proteção da profissão dos dubladores. 

Poder generativo da IA 

A preocupação desta categoria se funda, essencialmente, no fator econômico, tendo em vista a capacidade generativa da IA de reproduzir, a partir de amostras de vozes destes profissionais, textos inéditos e de forma infindável, sem o prévio consentimento e sem garantia da devida remuneração pelo uso de suas vozes. A tecnologia caminha a passos largos nessa direção. 

Esta incerteza torna-se clara na análise de contratos de dublagem, verificando-se que os dubladores não recebem qualquer valor quando suas vozes são reproduzidas, conforme trecho a seguir: “O Contratado entende e concorda que a utilização dos direitos originários e derivados de natureza patrimonial da prestação do Serviço, em todas as modalidades de utilização, inclui, mas não se limita, a utilização (inclusive por terceiros, a critério da Distribuidora) em todas as mídias ou tecnologias hoje conhecidas ou que venham a ser desenvolvidas no futuro, não limitadas a filmes cinematográficos, fitas magnéticas e digitais, vídeo doméstico, televisão.” 

É importante ressaltar que dublagem não é apenas a mera tradução de um texto em um idioma para outro, mas sim, é um processo pelo qual se ajusta peculiaridades do roteiro para a língua que se pretende. A adequação não se limita somente ao texto, mas envolve inclusive nomes de personagens, piadas e situações culturais, tudo para que a obra faça mais sentido no idioma que ela está sendo adaptada. 

Quem faz essa adaptação não é, por enquanto, uma ferramenta de IA. É um tradutor, alguém especializado em dar nova cara aos textos, criando essa conexão com o público de outra cultura, mas mantendo a essência da obra original. Somente após o roteiro já estar adaptado é que os diretores e dubladores entram em cena, não apenas para traduzir aquele texto, mas dar as cores necessárias para que haja conexão entre a obra e o povo brasileiro. 

Dublagens históricas 

O filme Tá dando onda (2007) possui uma das dublagens mais marcantes da história graças ao processo de adaptação. O roteiro original teve várias mudanças, mas sem que a essência do filme fosse alterada. Tais alterações possibilitaram que a obra dialogasse com o público brasileiro. Cody Maverick virou Kadu Maverick, Shiverpool se tornou Frio de Janeiro, Chicken Joe do Wisconsin passou a chamar-se João Frango do Pantanal Mato-grossense. Mas as adaptações não ficaram só nos nomes. Os personagens passaram a falar com um sotaque praiano carioca e a adição de frases que se tornaram clássicas como “Taca a mãe pra ver se quica”.  

As Branquelas (2004) fracassou nos EUA, mas no Brasil se tornou um clássico da comédia dos anos 2000. O mesmo ocorreu com A Nova Onda do Imperador (2000), cuja recepção do público brasileiro foi melhor do que a estadunidense.  

Músicas presentes em obras audiovisuais também sofrem processo similar, já que canções possuem o fator rítmico, e caso sejam traduzidas de forma literal, perderão suas rimas. Resultado: a letra fica sem sentido. No processo de adaptação de músicas, os tradutores precisam ser fiéis ao produto original e dialogar com o público consumidor, mantendo o ritmo e a essência que fazem com que uma canção se encaixe com perfeição no roteiro original. É possível citar a obra Tarzan (1999), no qual as canções na versão original foram gravadas por Phil Collins, e na versão brasileira, adaptadas por Ed Motta. 

Só considerando o processo de adaptação, já se percebe a necessidade de um grande trabalho criativo por parte dos tradutores e é justamente pelo aspecto artístico e único que fica difícil conceber uma tradução por meio de IA. A ferramenta traduz todas as frases de forma literal, perdendo o contexto de piadas e o ritmo das conversas. Sem falar na necessária carga dramática, algo que, ao menos por ora, a IA ainda não consegue reproduzir com perfeição.  

Ainda no fator dramático, entra em discussão a dublagem propriamente dita, o ato do dublador dar voz ao personagem. Como determinado pelo Sated (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões) para atuar como dublador profissional é necessário ser ator com DRT, ou seja, possuir o registro profissional.  Isto porque o sindicato acredita que somente um ator têm as capacidades técnicas necessárias para transmitir a verdade e emoção pela voz, da mesma forma que o ator que atuou na versão original. Os trabalhos de versão elaborados por IA deixam a desejar no quesito de transmissão de emoção na fala, por mais que em questão de tradução (de texto e de leitura labial) esteja perfeitamente sincronizado, a IA não transmite sentimento, deixando aquele texto sem alma e perdendo todo o sentido.  

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