Com aparência “natural” e estilo minimalista, o visual clean
girl domina as redes sociais. Entretanto, por trás da simplicidade
polida, o movimento é criticado por reforçar padrões e por excluir
corpos e identidades diversas
Por Isabella Scaramucci, Leonardo Marianno, Mariana Marsicano, Maíra Couto e Ricardo Reis
Entre 2021 e 2022, uma nova tendência de estilo despretensiosamente nasceu nos Estados Unidos. O termo clean girl aesthetic (“estética de garota limpa”, em tradução livre) começou a aparecer em algumas postagens da plataforma de vídeos curtos, mais conhecida como TikTok. Influenciadoras de estilo e beleza ensinavam suas seguidoras a alcançar o visual clean girl – talvez você não conheça esse termo, mas se mencionar Hailey Bieber, tudo fica mais claro.
Adeptas a essa tendência, as clean girls consideram a estética mais do que uma simples moda. Para elas, é um estilo de vida. São looks elegantes e minimalistas, elaborados sem muito esforço e com maquiagens discretas – as famosas no-makeup makeup (maquiagem sem maquiagem, numa tradução livre). Também adotam um estilo de vida marcado pela calma e naturalidade no seu cotidiano, com exercícios regulares, consumo de grandes quantidades de água, penteados simples, mas sempre bem-feitos, além de uma alimentação equilibrada.
Foi no início de 2022 que as chamadas clean girls explodiram nas redes sociais e o termo passou a aparecer mais. Posteriormente, certas figuras públicas também passaram a aderir à estética, como uma espécie de predecessoras da clean girl aesthetic. O melhor exemplo é a influenciadora Hailey Bieber, com o lançamento de sua marca de cosméticos “Rhode”. Não demorou para que essa estética se tornasse uma das mais aclamadas na internet, que viria a se espalhar pelo mundo, furando a bolha norte-americana.
A origem da estética clean girl
A estética clean girl explode no contexto de pós-pandemia. Após longos períodos de isolamento, incertezas e uma rotina desestruturada, muitas pessoas procuraram buscar um retorno ao controle e à organização pessoal, com reflexos na aparência. O visual das “garotas limpas” resgata uma ideia de autocuidado, disciplina e leveza, (contrastando com os excessos e o glamour de tendências anteriores). Ao mesmo tempo, a estética também dialoga com um desejo coletivo por simplicidade e bem-estar, representando uma resposta visual à exaustão emocional deixada pela crise sanitária.
O momento em que a trend clean girl se populariza é ilustrado a partir de dados mostrados no Google Trends, entre 31 de maio de 2020 e 8 de junho de 2022. Eles mostram que o termo teve o seu ápice de pesquisas entre junho e julho de 2020, com pico em janeiro de 2022. Dê uma olhada no gráfico abaixo:
Os cuidados com a pele
A marca registrada da estética clean girl é a pele limpa, uniforme e iluminada. Para alcançar esse “look”, as influenciadoras montam rotinas de cuidados com a pele, e de maquiagem, utilizando produtos para diferentes finalidades. Vídeos são encontrados aos montes no YouTube. Muitos apresentam tutoriais, detalhando os produtos de cuidados faciais e de maquiagem.
Mas a grande quantidade de produtos utilizados nas rotinas de autocuidado e maquiagem implica em altos custos. A Agenzia montou carrinhos de compra online, com produtos adaptados para a rotina de uma clean girl, e encontrou os seguintes valores (em maio de 2025)
Esses números mostram que sai caro se tornar uma clean girl. Se for seguir ao pé da letra essa estética, é preciso comprar o creme facial que todas as influencers estão usando, as roupas e calçados minimalistas e a onipresente garrafa Stanley. Só assim elas passam a ser efetivamente vistas como parte dessa comunidade.
O consumismo exacerbado é um aspecto cada vez mais influenciado, e a estética clean girl passa a ser uma prática adotada apenas por aqueles com certo poder aquisitivo. Mas não só. Apesar de se tratar de autocuidado, a prática de consumir vários cosméticos pode gerar o efeito contrário do esperado. De acordo com a dermatologista Cíntia Andrade, a associação simultânea de vários itens não é adequada. Ela afirma que, quando se trata do contato com a pele, essa combinação dificulta a absorção adequada de cada um dos produtos, uma vez que cada indivíduo possui um grau de penetração cutânea diferente.
A dermatologista rebate a necessidade e propõe uma rotina de autocuidado mais acessível e simplificada. Bastam apenas três produtos: gel de limpeza, hidratante facial e protetor solar (e maquiagem a gosto, claro). Ao comparar o preço da rotina de skincare mostrada por uma clean girl (totalizada em R$ 644,91) com o a recomendada pela médica dermatologista (R$ 142,59), observa-se uma diferença de R$ 501,82.
Para a profissional, essa rotina é um reflexo do medo que as pessoas têm em serem julgadas ou criticadas, fazendo com que elas desconsiderem os riscos e os possíveis resultados de procedimentos e tratamentos estéticos em prol de elogios e maior aceitação.
Nos tempos atuais, a aversão ao envelhecimento gera uma superoferta de produtos de beleza que, muitas vezes, prometem rejuvenescer a mulher. A indústria farmacêutica se aproveita da situação vulnerável das consumidoras. De acordo com um artigo da revista Geriatria e Gerontologia, o envelhecimento faz parte do processo de autorreconhecimento feminino, indo além da “perda de beleza”. Por fugir dos padrões estéticos atuais, como o das clean girls, muitas mulheres acabam se sentindo insatisfeitas com a própria imagem. É o que as levam a consumir produtos para fins de embelezamento de maneira excessiva para tentar reverter um processo que deveria ocorrer de forma natural.
O consumismo da estética clean girl
O visual de uma clean girl consiste em uma pele limpa, cabelos firmemente presos, e um guarda-roupa composto por peças simples em tons neutros. Para alcançar o padrão idealizado pelas adeptas à estética, as internautas são incentivadas a adquirir um número desnecessário de produtos – desde cosméticos para cuidado facial, capilar e de embelezamento, a acessórios como a famigerada garrafa Stanley. Isso evidencia uma contradição entre a teoria minimalista e a prática consumista da estética uma vez que a valorizada beleza natural exige um alto investimento, disfarçado sob uma aparente simplicidade.
Resultante da influência causada pelos chamados criadores de conteúdo, de forma (aparentemente) não intencional, é criado um padrão de beleza inatingível, no qual a “naturalidade” e a “beleza” só podem ser alcançadas por meio do uso de produtos caros, e da aquisição de acessórios específicos. Assim, as seguidoras, em busca de identificação com esses ícones de moda e beleza tão populares nas grandes mídias, tendem a realizar compras excessivas em uma tentativa de alcançar a estética clean girl tão almejada; e, se por algum motivo não conseguirem adquirir as mesmas coisas que são mostradas pelos influencers, pode-se gerar um sentimento de frustração ou insuficiência diante de um minimalismo ilusório, que acaba por exigir muito de quem tenta reproduzi-lo.
De acordo com o panorama de 2021 da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos, o Brasil ocupa a quarta posição no ranking mundial de maiores consumidores de produtos de beleza e higiene, apenas perdendo para os Estados Unidos, China e Japão. Além disso, o País é o terceiro maior mercado global em número de lançamentos de novos produtos anualmente, o que reflete um consumo intenso e crescente no setor de cosméticos.
Os cuidados com o cabelo
Uma das marcas registradas da estética clean girl são os cabelos presos, normalmente em um coque ou rabo-de-cavalo, cobertos por gel capilar e penteados para trás. Esse penteado transmite imagem de elegância, simplicidade e, principalmente, de limpeza. Mas prender os cabelos dessa forma, além de ser danoso ao couro cabeludo. A dermatologista Cintia Andrade afirma que o penteado puxado para trás, com o aspecto “lambido”, causa uma tração excessiva aos fios. Isso, por sua vez, pode acarretar queda capilar e, em casos mais graves, alopecia de tração (doença caracterizada por falhas de crescimento dos fios no couro cabeludo).
Além disso, o aspecto de limpeza, tão almejado pelas pessoas que utilizam o penteado e adaptam-se à trend clean girl, mostra-se contestável quando analisado em profundidade. Isso porque a maioria das usuárias se utiliza dessa técnica para disfarçar o aspecto oleoso do cabelo quando sujo. Nas redes sociais, algumas seguidoras de influencers de estilo já notaram essa incongruência tão evidente nos tutoriais de clean girl hairstyles (penteados de garota limpa, em tradução), como pode-se ver abaixo:
Comentários extraídos do mesmo vídeo de @poppymarchh, via TikTok.
A experiência de uma clean girl
Em entrevista exclusiva à Agenzia, a influenciadora norte-americana Autumn Saaro conta como é participar da trend clean girl que ultrapassa a mera estética. Ela – com seus 22,1 mil seguidores no Instagram e 74,4 mil no TikTok – revela que foi motivada a seguir o estilo durante a pandemia de Covid-19. Ela já publicou 249 posts em seu perfil no Instagram com esse estilo e acumula mais de 2,1 milhões de curtidas no TikTok, onde compartilha a sua rotina de looks minimalistas e dicas de autocuidado. Para ela, o estilo clean girl aesthetic é “fofo e divertido”, algo que se mostra inofensivo, uma vez que é fundamentado em pessoas tentando romantizar e melhorar aspectos de suas vidas pessoais.
A influenciadora declara que desenvolveu novos hábitos – como ingerir maiores quantidades de água, limpar mais vezes o ambiente em que vive, além de andar mais de 10 mil passos diariamente. Ela afirma que, às vezes, se sente cansada ao consumir por muitas horas um conteúdo materialista baseado em atividades de alta manutenção, reafirmando o quanto o clean girl não é tão simples quanto parece – por trás de uma aparente leveza e autocuidado, há um consumo, uma exclusão e cobrança.
O padrão estético da clean girl
Quando pesquisado nas redes sociais, o ideal de clean girl se mostra limitado. As características, acompanhadas por uma maquiagem natural que exala elegância e feminilidade, compõem o clássico estilo “limpo” dessa trend. Assim, algo que aparenta ser inofensivo, logo se transforma em problemático quando se nota que a maioria das clean girls, na mídia, são mulheres brancas.
A errônea associação de limpeza à “branquitude1” é histórica. Os conceitos de pureza e de higiene foram utilizados para distinguir corpos brancos e classe alta como superiores, enquanto os afrodescendentes e marginalizados eram vistos como sujos e desleixados. Exemplos disso são os anúncios publicitários de sabonete do século 20, afirmando que, ao utilizar o sabonete ofertado para remover a “sujeira” de corpos com tonalidades mais escuras, é revelada uma pele branca e “limpa”.
- Série de vantagens sociais, econômicas, materiais e simbólicas que as pessoas brancas têm em uma sociedade racista ↩︎
A jornalista Amina Bawa, mestre em Cultura e Comunicação, discorda da associação de sujeira aos afrodescendentes. Em entrevista com o site Terra, ela afirma que os escravizados trazidos para o Brasil eram tradicionalmente muito limpos, com muito contato com a água e a organização – desmentindo o mito de que a limpeza seria exclusividade branca. Assim, ela finaliza declarando que essas manifestações são uma marca de que o racismo persiste nas tendências atuais de “limpeza”.
Carolina Scalo, cientista social formada pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, aponta que as trends utilizam do sentimento de pertencimento dos usuários para agrupá-los em nichos específicos, causando um tipo de diferenciação. Aquelas que não possuem os atributos físicos requisitados – como a pele clara, cabelo liso e feições eurocêntricas – não se veem como suficientes, o que gera frustração e profunda tristeza, gerados por essa exclusão.
Em entrevista à Agenzia, a jovem afro-americana Makena Mwathi, intercambista em São Paulo, ajuda a entender os impactos da estética clean girl na sociedade estadunidense. Durante a ocasião, ela traz um ponto importante:
“A estética, em si, não é excludente, mas algumas pessoas a usam para julgar quem não se encaixa nesse padrão. Estilos mais alternativos, como o gótico ou o ‘artsy’, muitas vezes são vistos como ‘estranhos’ ou ‘cringe’. Isso cria um tipo de exclusão social estética”.
Ao ser questionada sobre a sua experiência como mulher negra na onda clean girl, ela responde:
“Pessoalmente, nunca fui alvo direto de preconceito por postar conteúdos relacionados à cultura negra. Mas vejo um padrão: criadores de conteúdo negros postam algo e não têm o mesmo alcance que criadores brancos com conteúdos semelhantes. É algo relacionado aos algoritmos, que muitas vezes favorecem pessoas brancas ou de pele mais clara”.
Makena ainda ressalta que esse crédito dado às influenciadoras brancas não se limita somente a criação de conteúdo, mas também a origem cultural do estilo postado:
“Também noto que elementos da cultura negra, como certos penteados ou estilos, muitas vezes são apropriados e reembalados como ‘novidade’, sem o devido reconhecimento. A cultura negra está sempre presente, mas raramente é creditada”. Ela cita, por exemplo, o cabelo preso e alinhado “slick back” é vendido como uma novidade porque se popularizou entre influenciadoras brancas, mas historicamente foi comum entre pessoas negras. “Vejo isso diariamente na minha universidade. Muitas amigas minhas seguem esse estilo. Não vejo isso como algo ruim — é bonito e fácil de usar — mas não é algo novo para mim. Sempre usei esses elementos.”
Em contraponto, Makena Mwathi defende que a educação resolveria essa questão, desde que se ensinasse sobre a origem das coisas, valorizar as culturas que criaram tendências.
“É preciso normalizar a presença da cultura negra sem apagá-la. Além disso, os algoritmos das redes sociais ainda refletem os preconceitos estruturais da sociedade. Por isso, acredito que a educação é a chave. Com conhecimento, conseguimos desconstruir os sistemas que perpetuam o racismo.”
Em suma, a estética clean girl possui duas faces: a externa, em que aparenta ser inofensiva, minimalista e saudável, e a interna, marcada pelo consumismo, pela segregação, exclusão e apropriação de elementos de culturas consideradas implicitamente como “inferiores”.
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