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6-junho-2025 Ano 1

Adoção no Brasil: estigmas e desafios para crianças e famílias

Como o olhar da sociedade impacta os processos adotivos, a realidade do processo burocrático e o desenrolar de histórias reais de adoção no país.

Por: Eloá Costa, Julia Delboni, Larissa Menegatti, Lavínia Vilas Bôas e Sofia Fiorilli

Para cada criança disponível para adoção no Brasil, há quase oito pretendentes à espera de formar uma família, segundo dados divulgados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) por meio do projeto Adote um boa-noite. A razão dessa contradição? O descompasso entre o perfil mais procurado pelos adotantes e a realidade dos que aguardam por uma família.

Muitas vezes, as famílias estipulam um perfil específico de idade e cor de pele, o que faz com que, mesmo com tantas pessoas dispostas a adotar, milhares de crianças e adolescentes continuem à espera de um lar. Grande parte daqueles que sonham com uma nova família se encontra na faixa etária acima dos 7 anos, enquanto a maioria dos adotantes opta por crianças mais novas.

A adoção, além de ser um ato de amor, exige resiliência. Os desafios vão além da burocracia: adotantes enfrentam dificuldades de adaptação e lidam com o olhar distorcido da sociedade sobre o processo – especialmente nos casos de adoção tardia.

Durante muito tempo, o processo de adoção foi representado como um tabu, incorporando um estigma no olhar da sociedade, ao ponto de, até mesmo, gerar distinções sociais. Com o passar dos anos, esse cenário começou a mudar: a causa ganhou mais visibilidade.

Histórias

Etiene Pereira é mãe de Bettina, uma garota de 6 anos, pele negra e cabelo bem cacheado. Em dezembro de 2018, após quatro anos de espera na fila de adoção, a assistente social telefonou para Etiene: Temos uma criança recém-nascida, parda, com três dias de vida. Se você quiser conhecê-la…”. Naquela noite, ela mal dormiu. Na manhã seguinte, seguiu ao fórum, recebeu autorização judicial e foi ao hospital encontrar sua filha. Dormi sem ser mãe, acordei sendo mãe”, descreve a emoção de quem, de um dia para o outro, passou a segurar nos braços o sonho concreto da maternidade.

Corretora de seguros, Etiene conta que sempre teve o sonho de ser mãe por meio do processo de adoção. Ela cresceu em um ambiente familiar em que seus pais apadrinhavam crianças de abrigos: Existia na época a possibilidade de você ir até um abrigo e apadrinhar essas crianças e trazê-las para dentro de casa, passar um final de semana, uma data comemorativa especial. Então, desde criança, eu sempre tive a vontade de ser mãe através de um processo de adoção”, afirma.

Costumo dizer que somos uma família colorida, porque meu marido é loiro, eu sou morena e ela é pretinha. A trajetória de Etiene e Bettina mostra como o amor familiar surge, independente de laços biológicos: Foi um amor muito construído. Ela não saiu de dentro de mim, então eu fiz de tudo pra que aquele amor entre nós fosse construído”.

Etiene relatou que a relação entre ela e sua filha foi algo bem desenvolvido, buscando sempre respeitar as origens de Bettina: “A gente nunca quis esconder isso. Eu acho a nossa história de um amor tremendo, eu sempre contei”.

Seu processo foi diferente dos casos de adoção que normalmente ocorrem, contou ela: Tive vários privilégios no processo de adoção. Foi também um pedido da mãe biológica para que a criança fosse encaminhada imediatamente para a família adotiva. Bettina não passou por nenhuma casa, nenhum abrigo. Ouvi dizer nos corredores do fórum que esse processo de ir direto para uma família de adoção é quase raro”, diz Etiene, em entrevista para a Agenzia.

Adotados e discriminados

Maria Eduarda Guarnieri, que foi adotada com quatro dias de vida, afirma que sempre se sentiu acolhida por sua família: “Normalmente os estereótipos são de que o filho adotado sofre muito, ele é esquecido, ele é colocado sempre de lado, mas na nossa família não”. A adoção sempre foi uma pauta tranquila de conversar no ambiente familiar de Maria Eduarda, onde sua mãe nunca escondeu o assunto, procurando tratá-lo com muita normalidade.

A jovem, hoje com 27 anos, disse que já vivenciou alguns casos de discriminação por ser adotada, em ambientes escolares e na faculdade, onde as pessoas a comparavam com seus irmãos, dizendo que eles “não seriam realmente seus irmãos”: “Eu já passei por situações bem delicadas na escola em relação a isso, na faculdade também. E nunca vindo da minha família, sempre de pessoas de fora”.

Os preconceitos atrelados à adoção no Brasil ainda são muito comuns. Em conteúdos midiáticos como reportagens sensacionalistas, discussões em redes sociais ou comentários em fóruns online é comum que pessoas adotadas sejam rotuladas como “rebeldes” ou “ingratas”. No entanto, esses estigmas não devem ser generalizados. Em casos como o de Maria Eduarda, por exemplo, esse tipo de julgamento ocorreu principalmente por meio de comentários discriminatórios vindos de pessoas fora do ambiente familiar.

Assim como Etiene, Maria Eduarda confirma que o ato da adoção é uma escolha, algo muito sério, sendo necessário que os pais tenham consciência de que irão mudar a vida de uma pessoa. As percepções diante da adoção devem ser extremamente assertivas. É vital que a família se entregue de corpo e alma, buscando oferecer a melhor vida possível ao novo membro, mas sem deixar de reconhecer as dificuldades e complicações que podem surgir.

O laço de amor é quem “comanda” essa escolha dos pais adotarem uma criança ou adolescente. Maria Eduarda, como uma pessoa que foi adotada quando criança, confirma que a adoção transforma vidas: “Eu acho que é uma transformação. É um ato de puramente amor” – finaliza.

Realidade da adoção

A devolução de crianças adotadas, infelizmente, tem se tornado uma realidade crescente no Brasil. “O número de crianças devolvidas aumentou muito”, afirma Ana Maria Silva, coordenadora do abrigo Lalec. Essa constatação expõe a fragilidade emocional de muitos adotantes, que, mesmo após passarem por cursos preparatórios e etapas rigorosas do processo de adoção, acabam se deparando com desafios que não conseguem enfrentar. 

“Ela foi adotada com três anos e meio. E não deu certo, ela foi devolvida”, relatou Ana Maria sobre uma das crianças do abrigo, revelando o impacto devastador dessa instabilidade. A criança mencionada já havia vivido em três abrigos diferentes antes da tentativa de adoção, sem nunca ter tido “nenhum lugar de estabilidade”. Essa vivência de ruptura compromete o senso de pertencimento e a possibilidade de construir vínculos afectivos sólidos. Mesmo com acompanhamento psicológico e esforços de novos cuidadores, os efeitos emocionais acumulados exigem um suporte contínuo e especializado. Isso mostra que o compromisso com a adoção vai bem além da vontade inicial.

Obstáculos e estigmas sociais

Eu sou branca, adotei um rapaz negro, e levei ele na loja. A moça olhou e perguntou: Você quer que eu faça alguma coisa? Ele está mexendo em alguma coisa?”, relatou uma mãe adotiva para Daniela de Almeida Oliveira, que trabalha como assistente social em casos de adoção de crianças e adolescentes. Esse tipo de situação ilustra o preconceito racial que muitas famílias enfrentam após a adoção.

Segundo Daniela, experiências como essa revelam a importância da preparação emocional dos pais adotantes, para que possam acolher seus filhos diante da discriminação e do julgamento da sociedade. A primeira coisa que os pretendentes têm que saber é se eles estão preparados para encarar uma nova realidade e alterar a dinâmica familiar deles”, diz ela.

“Você tem que buscar uma criança que você vai amar como seu filho, pontuou a assistente social. Além dos estigmas incorporados na sociedade, a falta de projetos de conscientização também se manifesta como um desafio para a quebra de visões equivocadas, uma vez que muitas pessoas ainda enxergam a adoção como um ato de caridade. É um ato de amor muito grandioso quando realizado com consciência.”, conclui Daniela.

Dia Nacional da Adoção (2024) – Flickr/Empresa – Divulgação (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.en)

Outro ponto sensível é a reprovação social sobre a entrega legal de crianças para adoção. Mulheres que optam por esse caminho enfrentam julgamentos e falta de acolhimento, o que leva, muitas vezes, ao abandono em situações ilegais. Casos como o da atriz Klara Castanho, que teve sua privacidade violada e foi vítima de comentários ofensivos ao entregar legalmente um bebê para adoção, evidenciam como falta empatia na sociedade.

Adoção tardia

A preferência por crianças mais novas na hora de adotar ainda é um problema no Brasil. Esse cenário revela uma realidade delicada e muitas vezes invisibilizada de crianças e adolescentes que passam anos na fila de espera. Essas trajetórias longas geralmente são marcadas pelo abandono, pela negligência e, em muitos casos, por passados violentos. Situações como essas exigem um olhar atento e profissional, para que esse processo, até então doloroso, se torne efetivo e reconfortante.

Para muitos adotantes, o passado das crianças é o principal fator que leva à adoção tardia. Adotar um bebê, ainda sem lembranças ou histórico, parece mais fácil do que acolher alguém que já viveu traumas e carrega uma bagagem emocional que precisa ser trabalhada. O medo desse passado assusta, afasta potenciais adotantes e gera inseguranças quanto à adaptação da criança em uma nova família.

Leticia Hyppolito, psicóloga especialista em casos de adoção, destaca a importância do suporte emocional ao longo de todo o processo. “Por isso, é tão importante a psicoterapia para ajudar os pais adotantes a lidarem com a dor que o seu filho tenha passado”, aconselha.

A preparação dos futuros pais é fundamental para que saibam lidar com possíveis comportamentos dos filhos. Criar um vínculo afetivo com uma criança que não aprendeu a confiar, após tanto tempo desamparada, é uma dificuldade comum e precisa ser acolhida com paciência.

De acordo com o artigo “Os Aspectos Psicológicos da Criança e do Adolescente na Adoção Tardia”, publicado na Revista Psicologia: Ciência e Profissão, esses comportamentos difíceis são, muitas vezes, manifestações de emoções reprimidas, como raiva, culpa ou até uma infantilidade além do esperado para a idade. É essencial que os pais entendam de onde nascem essas atitudes, para que não confundam esses sinais com falta de educação ou má índole e enxerguem como marcas de traumas que ainda precisam ser trabalhados.

O passado da pessoa adotada

O passado da criança adotada não deve representar um problema no que diz respeito ao processo de adoção, por isso, é importante que a família tenha um olhar cuidadoso para essa bagagem do novo membro da família. É recomendável que a adaptação à nova história e a conciliação com o passado seja um processo acompanhado e avaliado por um profissional. 

Mesmo que não exista nenhum contato com a família biológica, reconhecer a história da criança, o que ela passou, de onde ela veio, que houve uma família antes, é muito importante para a criança. Porque diz quem ela é. Diz, para ela, de onde ela veio,  das origens dela. Então, como que a gente apaga isso? É como apagar a subjetividade de alguém. Como tentar apagar uma pessoa”, explica a psicóloga especializada em adoção Leticia Hyppolito, em entrevista à Agenzia.

A preservação do passado de uma criança adotada não é apenas um ato de empatia, mas uma medida essencial para o desenvolvimento saudável de sua identidade. Ainda, como sugere Hyppolito, a psicoterapia é indicada não somente à criança adotada, mas também para todos envolvidos: Não é só com a criança. É essencial que os pais participem desse processo, seja com um psicólogo ou um grupo de apoio a pais adotantes. Não adianta a gente trabalhar a confiança só do lado da criança se os pais têm medo do passado dela.”

É importante que as casas de acolhimento avaliem as ferramentas possíveis para a preservação do passado da criança, de forma a disponibilizar esse material para as famílias de alguma forma, e preservar ludicamente sua história, facilitando o entendimento dela, sua memória gráfica e afetiva. É como acontece no abrigo Lalec, onde é concedido a cada criança um álbum de fotos, que registra toda a trajetória de vida, desde a chegada no abrigo, até a adoção daquela criança.

Segundo Ana Maria Silva, coordenadora da casa Lalec, esse simples álbum impacta positivamente na preservação da memória dos adotados, fortalecendo os laços entre passado, presente e futuro. No abrigo, havia uma criança que viveu muito tempo e levou seu álbum de fotos ao ser adotado. No primeiro aniversário com a nova família, a mãe deixou o álbum visível para todos. Isso comoveu a coordenadora, pois o garoto dizia: “Vai, vem cá! Qualquer pessoa que chegar aqui vai ver a minha vida”, convidando as pessoas a conhecerem sua história, algo que ele foi muito incentivado a fazer.

A integração entre passado e presente no processo de adoção não é apenas um gesto de afeto e acolhimento por parte dos adotantes, mas uma prática respaldada por especialistas e de ocorrência fundamental. Ao explorar as histórias de vivências adotivas, é possível evidenciar que crianças que têm suas histórias preservadas e reconhecidas apresentam maior estabilidade emocional e facilidade na construção de novos vínculos familiares. 

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio do Cadastro Nacional de Adoção e Acolhimento, reforça a importância do preparo e do acompanhamento para as famílias adotantes, sendo uma medida essencial para o sucesso da adoção. A preservação da história da criança é reconhecida como parte desse preparo. Isso inclui a participação obrigatória da família em programas de preparo e treinamento para a adoção, que reforçam aspectos fundamentais para o acolhimento, além de aspectos jurídicos, fornecendo informações que auxiliam os postulantes a decidirem com mais segurança sobre a adoção e a se prepararem para possíveis desafios durante a convivência inicial com a criança ou adolescente.

Tais exigências e preparações reforçam a importância de práticas que preservem a trajetória das crianças, como a iniciativa do abrigo Lalec. Essas práticas não apenas ajudam na adaptação e no fortalecimento dos vínculos familiares, mas também promovem o desenvolvimento saudável da identidade das crianças, reconhecendo e respeitando suas origens.

*Foto em destaque: Etiene Pereira e sua família – Jhessica Viana (fotógrafa) e Babuska Fotografia / Acervo Pessoal 

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Escrito por Eloá Costa, Julia Delboni, Larissa Menegatti, Lavínia Vilas Bôas e Sofia Fiorilli.

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