Músicas, filmes e livros apresentam conteúdos cada vez mais supérfluos e repetidos, construindo uma sociedade menos crítica
Por Augusto César, Augusto Santos, Enrico Barranco, Gabriel Dalla, Otávio Machado e Walfredo Júnior
A cultura, como o cinema, a literatura e a música, se adaptou à dinâmica da sociedade e adentrou o mundo do consumo rápido. Os filmes são lançados em massa nos streamings, as músicas feitas com moldes de redes sociais e os livros apresentam enredos com a mesma fórmula. O termo fast-food, constantemente associado à culinária ou até mesmo à moda (sim, a fast fashion), transforma a relação entre pessoas e a arte com a produção de elementos culturais com conteúdos rasos que impactam a construção do senso crítico.

No mundo que acorda e dorme em um piscar de olhos, em que até as relações afetivas estão cada vez mais curtas no espaço de tempo, a cultura fast-food também impacta os profissionais nos meios de comunicação, tais como televisão, música e, principalmente, nas redes sociais. O desejo constante de produtos curtos e facilmente compreendidos reduz o aprofundamento dos conteúdos. Sem uma necessidade de apuração concreta e assertiva, os profissionais deixam de procurar elementos profundos e históricos para produções de conteúdo.
Com passagens pelo portal R7, como editor-chefe geral do site, e revistas Sexy, Play TV, Pais e Filhos, Rolling Stones, além de outros veículos de prestígios na mídia, Odair Braz falou sobre a mudança da construção da cultura. Segundo o especialista, a chamada “cultura fast-food” representa um processo crescente de superficialização e aceleração do consumo cultural. Para ele, esse fenômeno tem se intensificado nos últimos anos, impulsionado por múltiplos fatores, em especial pela transformação tecnológica e o papel dominante das redes sociais e da internet.
Geração TikTok
A cultura contemporânea vem sendo transformada pelas redes sociais, especialmente pelo TikTok, que alterou a forma como os conteúdos são produzidos e consumidos. O editor Odair destaca que o impacto é evidente no setor musical: “O conceito tradicional de composição vem sendo desconstruído. Atualmente, muitos artistas lançam músicas mais curtas, com frases de efeito e refrões pegajosos, muitas vezes acompanhados de coreografias virais — elementos pensados para funcionar dentro da lógica do TikTok. Isso, sinceramente, me parece um absurdo”.
A tendência à superficialidade e à fragmentação da informação não surgiu com o TikTok ou as redes sociais — ela já vinha se desenhando há décadas. Um marco importante é a popularização da chamada “linguagem MTV”, nos anos 1980. Naquele período, houve muitos comentários sobre esse estilo caracterizado por cortes ágeis, uma edição intensa e a repetição de cenas em sequência. Era uma linguagem visual direcionada ao público jovem, muito presente em videoclipes e programas da MTV. Já se percebia ali uma nova forma de capturar a atenção — mais dinâmica, quase acelerada.
O editor também confirma que, apesar do impacto inegável do TikTok na forma como as pessoas consomem conteúdo, não se deve imaginar que ele “matará” outras mídias. Segundo Odair, “com o passar dos anos, nenhuma plataforma elimina completamente outra. O que ocorre é uma disputa por atenção, onde uma mídia pode ganhar mais força e atrair mais pessoas, mas não substitui por completo as demais”.
Quando a internet surgiu, muitos diziam que os jornais impressos e as revistas desapareceriam. A verdade é que esses meios continuam presentes — com tiragens reduzidas, menos páginas e voltados a públicos mais segmentados, mas ainda ativos. O mesmo vale para o rádio e o cinema. Muitos previram que a televisão acabaria com ambos, o que também não aconteceu. As mídias se sobrepõem, impõem novos desafios, mas não se anulam.
Sobre o TikTok em si, Odair fala sobre as características do aplicativo e expõe uma experiência própria com a rede social: “É uma rede voltada ao consumo de vídeos curtos e rápidos — foi criada com esse propósito, e cumpre essa função de forma extremamente eficiente. Mas, a grosso modo, é uma plataforma rasa. Isso não é por acaso, ela foi pensada assim. Baixei o TikTok, usei por um tempo, mas tirei do celular. Era assustador. Eu percebi que não conseguia parar de ver vídeos sobre qualquer coisa. É um consumo compulsivo, que interfere diretamente na forma como lidamos com a informação e, mais grave, na nossa capacidade de concentração”.
O vício na palma da mão: redes sociais
A internet não apenas deu continuidade a essa lógica, como a radicalizou. O celular elevou essa dinâmica a um novo patamar. Atualmente, as pessoas permanecem conectadas o tempo todo, expostas simultaneamente a múltiplas informações, como vídeos, sons, mensagens e redes sociais. Esse dispositivo concentra tudo em um único lugar e, apesar de capturar a atenção, também favorece uma dispersão constante. De acordo com dados de uma pesquisa feita pela organização Common Sense, cerca de 97% dos estudantes participantes utilizam os celulares nos horários escolares, afetando a concentração e o aprendizado dos alunos.
Os impactos negativos dos avanços da internet são problemas recentes. Os governos do mundo todo começaram a voltar sua atenção para o imenso poder das empresas de tecnologia. A Inglaterra e os Estados Unidos, por exemplo, discutem o papel do Google, diante de acusações de monopólio e manipulação no direcionamento de conteúdo. Essas práticas serão julgadas pelo sistema legal dos países, o que pode influenciar o futuro da atuação da empresa no ambiente digital.
Para Odair, a influência das redes sociais e do consumo digital vai além da informação: afeta diretamente a qualidade de vida das pessoas. “Tudo depende da intensidade com que se consome esse conteúdo, do tempo que se passa diante das telas. O uso excessivo do celular e das redes sociais tem gerado vícios reais, com consequências importantes, e isso precisa ser observado com mais seriedade.”
Por um lado, essas plataformas possuem um potencial para a democratização do acesso à informação e a possibilidade de dar voz aos grupos e indivíduos silenciados e invisibilizados. O X, antigo Twitter, ampliou o espaço para que diversas pessoas, instituições e entidades pudessem se expressar publicamente, algo que dificilmente ocorreria sem o acesso a esse tipo de plataforma.
Por outro lado, há um risco nesse espaço de manifestações de diferentes grupos. A fala “as redes sociais deram voz a uma legião de estúpidos” do filósofo Umberto Eco mostra a possibilidade de desinformação e compartilhamento de informações falsas. O editor Odair concorda que realmente há um lado perigoso, mas que isso não pode ofuscar os efeitos positivos. “Existe muita gente fazendo trabalhos incríveis, que jamais seriam conhecidos sem as redes. Um exemplo claro é o padre Júlio Lancellotti. Ele usa suas redes para denunciar abusos e mostrar o que faz pelas populações vulneráveis. Muita gente só tem conhecimento do seu trabalho graças à visibilidade que ele consegue nas plataformas digitais”, finaliza.
A duração e o conteúdo das músicas
Ao longo da história, as músicas passaram por mudanças e atenderam aos interesses das massas consumidoras em diferentes épocas. Seguindo as tendências definidas pelos algoritmos das redes sociais, as canções são construídas com refrões chicletes e durações reduzidas com o objetivo de se adequar às dinâmicas da internet. Lucas Callut, cantor e compositor de música popular brasileira, reconhece essas constantes adaptações das canções. “Quando a música se torna, além de uma arte que parte da alma, um produto, o cenário muda. Esse é o momento em que há uma inversão entre valor artístico e valor de mercado. O dito artista precisa compor com rapidez, lançar singles todos os meses, atender o algoritmo das redes e plataformas. Não dá tempo de sentir”, afirma.
A cultura fast-food também tem tornado as letras das obras mais superficiais. Um estudo feito pela Scientific Reports, da revista científica Nature, aponta que as letras das músicas tinham mais lirismo e sonoridade nas suas construções nas décadas passadas. Os artistas passaram a criar músicas com simplicidade nas frases e nos temas, deixando as temáticas profundas e as interpretações densas no passado. Algumas músicas, como Metamorfose ambulante, de Raul Seixas, Construção, de Chico Buarque e O tempo não para, de Cazuza, são exemplos de músicas dos anos 1970 e 1980, que demonstram a abordagem de temáticas mais elaboradas e críticas. “Não é à toa que temos visto tantas músicas populares que são criadas por inteligência artificial, repetindo frases e verbos prontos: sentar, botar, rebolar, sarrar. Ninguém mais fala sobre pensar, sobre sentir, a menos que seja sentir algo físico”, disse Callut.

A música Mãe solteira, de J. Eskine, é um retrato dessa cultura fast-food. Apesar de abordar um tema pouco comentado entre as composições, a letra da música destaca o teor sexual das mães solteiras e cita a independência das mulheres em um segundo plano. “Pra que tu foi meter um filho com aquele otário?” e “ela pede bença, bença, pede bença pro papai” são algumas passagens da música que mostram essa diferença de enfoque. Já a música Oh garota eu quero você só pra mim, de Oruam, retoma o desejo amoroso e possessivo de um homem por uma mulher, o qual é uma temática preconceituosa e repetida em diversas canções da atualidade. Trechos, como “Ô, garota, eu quero você só pra mim”, “Só pra tropa, tropa, tropa do Oruam” e “Não vou perdoar você sensualizando”, demonstram a presença do assunto ao longo da letra.
As músicas têm se tornado cada vez mais homogêneas, como reflexo direto da mudança de comportamento do público. O jornalista Odair comparou o consumo e a produção de músicas em diferentes gerações: “As novas gerações, em sua maioria, não têm mais paciência para ouvir um álbum completo. Aquela experiência de sentar-se por uma hora e apreciar um disco do início ao fim tornou-se rara. Em vez disso, os artistas passaram a lançar faixas avulsas mensalmente, rompendo com o modelo tradicional da indústria fonográfica”.
Literatura e o senso crítico
O consumo de obras literárias rasas impacta a capacidade crítica e a reflexão existencial. “A arte vai te levar a refletir sobre a sua condição humana. E aí, a partir desse momento, você tem mais consciência, você é menos fragmentado por uma sociedade que quer que você funcione como uma peça de uma engrenagem e não uma peça crítica, para que você possa escolher que peça você quer ser dentro da sociedade. É dar senso de totalidade”, disse Lucas Limberti, professor de literatura formado em Letras pela Universidade de São Paulo. Escritor, crítico de arte e jornalista, ele afirma ainda: “A arte, de forma geral, vai trazer esse senso de totalidade, de você se reconhecer como ser humano, como cidadão, e não só uma peça apertadora de parafuso, que é um problema”.
A literatura da cultura fast-food também vai na contramão da construção de um senso crítico, justamente por ser algo que demanda certo tempo. “A construção de um senso crítico justamente demanda tempo e reflexão. E, nesse sentido, essa cultura que estamos chamando de fast-food é uma cultura alienante, no sentido de nunca permitir que as pessoas expostas a esse tipo de produção consigam chegar à raiz das questões que estão sendo colocadas nessa produção”, diz Renato Essenfelder, cronista do Estadão, escritor e professor universitário com formação pela ECA-USP. “Então, é uma “cultura”, entre muitas aspas, que me parece ser ahistórica, sem historicidade, em que tudo aparece e desaparece numa fração de segundos.”
A cultura fast-food gera a homogeneização cultural da sociedade. A partir dos estudos de Theodor Adorno e Max Horkheimer, da Escola de Frankfurt, a indústria cultural se refere à produção de recursos culturais em grande escala para gerar lucro ao atender as demandas das grandes massas consumidoras. Os conteúdos culturais ficaram uniformizados com base nos interesses dos coletivos de consumo e impedem a diversidade cultural, disseminando conteúdos com caráter de entretenimento cada vez mais passivo e cada vez menos crítico.
Essa lógica também se estende ao universo literário. Um exemplo é o crescimento de publicações voltadas para influenciadores digitais, marcadas por textos breves, linguagem simplificada e conteúdos, muitas vezes, superficiais. As obras passam a ser desenvolvidas para uma leitura rápida, com poucas páginas e mensagens diretas, geralmente sem profundidade. Isso reflete uma tendência cultural marcante da atualidade.
No contexto da construção do senso crítico da sociedade, um fator preocupante na comunicação contemporânea é a superficialidade crescente dos conteúdos jornalísticos. Portais, jornais e livros vêm adotando uma linguagem extremamente simplificada em suas notícias. O objetivo é facilitar a leitura e garantir que o público consiga consumir rapidamente as informações básicas. Contudo, esse processo tem um custo alto. “Grande parte dos textos acaba sendo rasa, e isso acontece por dois motivos principais: primeiro, para permitir que o leitor compreenda algo rapidamente, sem se aprofundar; segundo, porque muitos dos jornalistas recém-formados passaram por uma formação superficial e não conseguem fornecer o contexto necessário em suas matérias”, disse Odair Braz.
Ninguém precisa saber absolutamente tudo, mas é essencial buscar informações, pesquisar e compreender os contextos. A lacuna de conhecimento observada atualmente está diretamente relacionada ao modo como a informação vem sendo consumida: de maneira apressada, superficial e, muitas vezes, distorcida. Muitas pessoas têm deixado de lado a leitura de livros completos e preferido versões resumidas por inteligências artificiais, que muitas vezes apresentam os acontecimentos de forma incompleta ou com interpretações alteradas.
Cinema e os enredos
Tal qual na música e na literatura, a cultura fast-food também está muito presente no cinema. Filmes são produzidos em grande quantidade para atender à demanda do público, que acaba preferindo uma obra mais rasa, que não provoque o senso crítico. Roteiros repetidos também têm sido algo recorrente na indústria cinematográfica nos últimos tempos. Nos filmes de romance da Netflix, a história acaba sendo geralmente muito parecida, sem qualquer resquício de complexidade.
Isso se aplica não apenas ao gênero romance, mas a praticamente todas as produções originais da empresa, como os filmes genéricos da Millie Bobby Brown. Os únicos filmes da Netflix que se distanciam disso são produzidos visando o Oscar, que são complexos e dão mais liberdade e originalidade aos diretores.
Diogo Diamantino, estudante de cinema da Faap, observa essa semelhança de roteiro nos filmes da Marvel: “Nos filmes da Marvel, sempre vemos os personagens voltando, voltando, e voltando sem que isso construa algo relevante. O problema está no fato de que esses retornos querem se sustentar por si só para agradar ao público, e não trazer novas camadas para o enredo”. Segundo ele, grande parte dos fãs tem se incomodado com a estratégia que o “UCM” (Universo Cinematográfico da Marvel) vinha adotando para lançar suas produções, priorizando quantidade em vez de qualidade, o que desagradou bastante o público em geral.
A Marvel decidiu escutar os fãs e voltou a dar mais enfoque em qualidade e roteiros que realmente valham a pena ser adaptados, dando mais tempo também para todos os aspectos da produção, como edição, efeitos visuais, fotografia e pós-produção, que vinham sendo feitos de modo acelerado. Isso tudo acabou gerando várias críticas aos efeitos especiais de diversas obras que, quando comparadas a anteriores dos anos 2010, pareciam ter uma qualidade bem inferior, quando deveriam possuir efeitos especiais muito melhores.
Apesar de ainda existirem produções de qualidade no cinema, há uma tendência visível de conteúdos voltados para o consumo rápido, com menor profundidade e reflexão. Essa mudança atende à demanda de um público cada vez mais habituado a absorver informações de forma imediata e fragmentada. Trata-se, muitas vezes, de uma escolha dos próprios produtores culturais, que optam por formatos que conversem diretamente com esse público.
O equilíbrio para a cultura fast-food
Existe alguma forma de equilibrar a balança entre o fazer da arte e a forma de consumir do público atual? É uma pergunta de difícil resposta. Continuar seguindo esse caminho de se moldar a partir da forma que as pessoas pensam e consomem os produtos culturais pode ser danoso à arte. Mas ignorar a audiência não é a solução, tampouco faz sentido. O cinema, a literatura e a música produzem para a população em geral e precisam do apoio dela para continuarem existindo.
A conciliação entre o consumo em massa e uma produção orientada por uma visão crítica e diversa pode alcançar, principalmente, uma educação libertadora. Segundo Renato Essenfelder, “quando falamos em educação libertadora, devemos refletir sobre formas alternativas de produzir, viver e se posicionar no mundo. Não adianta todos terem ensino superior se continuamos inseridos em um sistema que explora as pessoas ao extremo. E não quer dizer que essas pessoas não têm educação. O problema é que, se essa educação não estiver alinhada a um projeto de transformação social, ela tem pouco impacto real.”
A partir da educação da sociedade sobre a importância das construções culturais para a constituição da criticidade, é possível harmonizar a atuação da cultura fast-food com a diversidade artística. “Educar os alunos para ouvirem além daquilo que já escutam nas redes sociais, a fim de estimular o raciocínio crítico, é um dos caminhos para reduzir os impactos da cultura fast-food”, afirma Lucas Callut.
Para Odair, ainda estamos distantes de um equilíbrio saudável entre o consumo tecnológico e a formação de cidadãos conscientes. “Vai levar tempo até que encontremos uma forma razoável de lidar com tudo isso. Estamos em processo de aprendizado, de entendimento — mas é essencial que esse debate continue acontecendo, com a participação de todos”, finaliza o jornalista.
