A geração Z transformou o colapso emocional em rotina — e a sociedade aplaude, desde que os resultados não parem
Por Giovanna Freire, Isadora Fregnani, Julia Moreira, Maria Eduarda Gabnai, Rafaela Pinaffi e Sofia Tosta
Dormir mal, trabalhar além da conta e estar constantemente exausto virou rotina — e, para muitos jovens da geração Z, quase um símbolo de status. Mas o que isso revela sobre nossa relação com o cansaço e o desempenho?
Cansaço como rotina entre jovens
Nascida entre meados dos anos 1990 e o início dos anos 2010, a geração Z cresceu em um mundo hiper conectado, com acesso constante a informações, redes sociais e pressão por produtividade. Essa combinação criou um ambiente onde o cansaço deixou de ser um sinal de alerta para virar parte do discurso diário.
Sophia Marques, formada em Relações Públicas, recebeu o diagnóstico de burnout aos 20 anos, após ignorar os sinais de exaustão enquanto conciliava trabalho, faculdade e treinos A história dela exemplifica o que especialistas como a psicanalista Fabiane Perez e a especialista em comportamento humano Patrícia Gabnai apontam como um padrão preocupante entre jovens da geração Z: a autocobrança excessiva, o cansaço extremo e o risco de colapso emocional normalizado pela sociedade. É o retrato de alguém que vive para produzir, mesmo que isso custe a própria saúde.
O impacto do burnout na geração Z
Em 2022, Sophia vivia uma rotina extremamente cansativa e exigente, “Me pegou meio de surpresa, confesso. Na época, eu estava me dando bem no trabalho, mas não amava o que fazia. E na faculdade, tínhamos um projeto muito grande para ser entregue, além dos treinos de handebol, que são muito tarde e duas vezes por semana. Eu estava emocionalmente muito mal”, afirmou.
Ela dizia acreditar que o cansaço extremo era consequência da rotina puxada, e que só percebeu que poderia ser algo mais grave quando, após uma saída com amigos, voltou para casa com a visão comprometida. “Quando eu fui ao oftalmologista, ela me disse que minha hipermetropia tinha voltado, o que é muito raro de acontecer. Mas é viável em casos de cansaço extremo”, explicou.
Após perceber os sintomas, Sophia conta que recebeu o diagnóstico por meio de sua psicóloga, e ao apresentá-lo aos seus gestores, foi orientada a tirar 15 dias de férias para descansar, nas quais foi viajar com suas amigas para o Rio de Janeiro. “Eu descansei a mente, não o corpo”, relembrou. Para ela, receber o diagnóstico foi fundamental para entender e aceitar o que estava sentindo. “Acho que o diagnóstico, para mim, foi melhor. Eu consegui aceitar melhor o que estava acontecendo comigo, e a partir disso, definir quais passos eu iria tomar”, relatou.
“Você pode ser tudo” — a armadilha do ideal inatingível
A jovem relata que a autocobrança e o discurso social e familiar impactavam diretamente na forma como lidava com seus compromissos, não se dando o devido descanso e reconhecimento, sempre em busca de mais. Ela diz acreditar que nem a faculdade nem o trabalho tinham responsabilidade direta sobre a situação, mas que ela mesma poderia ter equilibrado suas tarefas de maneira mais eficiente e menos desgastante. “São duas coisas muito grandes que estão acontecendo ao mesmo tempo (faculdade e trabalho). E vem muito do discurso de que precisamos fazer os dois, e fazê-los bem-feitos. Acho que é por isso que a gente banaliza tanto o cansaço, a gente escuta isso desde sempre”, explica.
Estresse acadêmico e autocobrança
Mary Sandra Carlotto e Sheila Gonçalves Câmara, autoras de um estudo na Revista Brasileira de Educação, identificam a síndrome de burnout em estudantes universitários por meio da Escala ESB-eu e do Questionário de Estressores Acadêmicos. Esses instrumentos analisam fatores como exaustão, desvalorização, ineficácia e as principais fontes de estresse no ambiente acadêmico — como carga excessiva de disciplinas, dificuldade de equilibrar estudo e lazer, relação com professores, provas, estágio e atividades extracurriculares. No caso de Sophia, a dificuldade em conciliar essas demandas com momentos de descanso, somada à pressão por desempenho, evidencia como esses estressores impactam diretamente sua saúde mental e reforçam a normalização do cansaço e da produtividade constante.
A psicanalista e psicopedagoga Fabiane Perez concorda com essa visão e complementa: “O problema é que, ao não conseguirem sustentar esse estilo de vida idealizado, muitos jovens se veem frustrados, ansiosos e com a autoestima abalada. Isso alimenta um ciclo perigoso que pode levar ao esgotamento completo”, explica.
A especialista em comportamento humano e em Comunicação Não Violenta, Patrícia Gabnai acrescenta que a expressão “você pode ser tudo o que quiser” — frase motivacional que embalou a juventude dos últimos anos — pode ter se transformado em uma das armadilhas emocionais mais perigosas da atualidade. Ao invés de abrir portas, essa promessa tem gerado uma cobrança interna silenciosa, intensa e exaustiva. Na prática, muitos jovens se sentem sobrecarregados, desorientados e pressionados por um ideal de sucesso que parece inatingível. É sobre um cansaço que não é físico, mas existencial.
A importância da escuta, apoio e autoconhecimento
Atualmente, a vida de Sophia continua corrida e cheia de afazeres, mas ela aprendeu a lidar com as responsabilidades de maneira mais leve. Ela conta que o apoio das amigas foi essencial nesse processo, e que sua experiência serviu de alerta para que as jovens não passassem pelo mesmo problema.
Além do apoio externo, Patrícia Gabnai acredita que é necessário explorar o autoconhecimento e olhar para si com mais gentileza, entendendo e respeitando os limites do próprio corpo, e da própria mente. “A CNV (Comunicação Não Violenta) nos ensina que todo sentimento é um mensageiro. Se estamos tristes, irritados ou ansiosos, é porque alguma necessidade não está sendo atendida”, explica. O problema é que o tempo virou luxo. “Dizem que não têm tempo para parar. Mas, se não param por consciência, vão parar por exaustão. A doença vai obrigar. Eu mesma já vivi isso. Adoeci por ignorar os sinais”, comenta.
O “zumbi do desempenho”: viver para produzir
De acordo com o filósofo Byung-Chul Han, no livro “Sociedade do cansaço”, doenças neuronais como a depressão, transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), transtorno de personalidade limítrofe (TPL) ou a síndrome de burnout (SB) determinam a paisagem patológica do começo do século XXI. Não agem como infecções, mas infartos provocados pelo excesso de positividade. Nota-se que esses transtornos se tornaram cada vez mais comuns, sobretudo entre jovens e adultos da GenZ. Isso ocorre, pois vivemos em uma era de superestimulação, na qual o excesso de informação, a cobrança excessiva e a competição no mercado de trabalho passam a ser fardos, e se desenvolvem como fatores cruciais para o desdobramento de doenças neurológicas.
A privatização do ócio e de tempos de lazer são alguns dos principais desafios enfrentados por jovens atualmente, já que estão focados em resultados e bons desempenhos diariamente. Byung-Chul Han caracteriza esse comportamento com a expressão “zumbi do desempenho”, que aborda o modo de vida de pessoas que se tornam “automáticas”, incapazes de viver plenamente, presas à pressão constante por resultados.
Redes sociais e o descanso que nunca chega
Sophia diz acreditar que a GenZ tem rompido barreiras ao promover espaços de conversa e acolhimento sobre temas como a saúde mental — que sempre existiram, mas costumavam ser ignorados. “A gente cresce ouvindo dos nossos pais que eles sempre fizeram mais, e acho que a gente acaba criando um preconceito sobre o cansaço. Então é muito bom que consigamos conversar sobre ter espaço para falar disso”, opina a jovem. Ela também diz que, apesar de benéfica, as redes sociais têm aspectos negativos que interferem diretamente no descanso mental. Sophia acredita que, apesar de descansarmos fisicamente, quando estamos conectados em alguma rede, o nosso cérebro é estimulado o tempo todo, o que agrava ainda mais o desgaste quando somado à pressão dos estudos e do trabalho.
Patrícia Gabnai complementa dizendo que a geração Z está crescendo em um cenário no qual a informação nunca foi tão abundante e acelerada. “A mente humana é curiosa por natureza. E hoje, tudo é divertido, rápido e instigante. O problema é que essa hiperestimulação esgota, mas como ninguém ensinou esses jovens a reconhecerem o próprio cansaço, eles ignoram os sinais”, explica.
Entre Expectativas e Cansaço: O Peso da Alta Performance”
Para Patrícia, a lógica atual da sociedade foi do controle externo para a auto exploração. Como propõe o filósofo Byung-Chul Han, não são mais regras rígidas que controlam o comportamento, mas sim a exigência interna por produtividade, visibilidade e perfeição. “O que antes era imposto, hoje é internalizado. E isso afeta profundamente o modo como enxergamos nosso valor”, explica a especialista.
Essa autoexploração, segundo ela, faz com que muitos jovens entrem no mercado com grandes expectativas, mas pouca estrutura emocional. “Nas minhas mentorias, vejo líderes iniciantes confusos, ansiosos, perdidos entre tantas possibilidades e cobranças. Há uma diferença clara entre os jovens que tiveram acesso à informação e os que não tiveram — mas o cansaço chega para todos, em graus e formas diferentes”, comenta.
A escolha que antecede a mudança
Para prevenir o esgotamento, Fabiane Perez ressalta que é importante a adoção de uma rotina mais equilibrada, com pausas regulares, momentos de lazer e acompanhamento psicológico quando necessário. “Não é sinal de fraqueza desacelerar. Pelo contrário, é um ato de consciência e cuidado com a própria saúde”, comenta. Patrícia Gabnai também compartilha do mesmo pensamento, e encerra com um convite simples, mas importante: “Volte a fazer algo que você gosta. Algo que te faça feliz. Isso é gentileza com você. E é o primeiro passo para não banalizar o seu próprio sofrimento”, aconselha.
A mente sobrecarregada, o corpo ignorado e as emoções silenciadas revelam um conjunto de conceitos enraizados, que precisam ser ressignificados. Talvez a pergunta mais urgente não seja “como dar conta de tudo?”, mas sim: “por que eu acredito que preciso dar conta de tudo o tempo todo?”. Em meio à correria, à hipervigilância digital e à busca incansável por reconhecimento, é fácil cair na armadilha de achar que o cansaço é apenas frescura — especialmente quando ele não tem forma física, mas pesa no peito, nas decisões e nos dias que parecem todos iguais.
É preciso entender que o esgotamento vivido pela geração Z não é inferior, nem mais dramático que o de outras gerações — é apenas diferente. É o cansaço de uma era hiperconectada, da autocobrança internalizada, da promessa de que “você pode tudo”, e do medo constante de não ser suficiente. Ainda que muitas vezes deslegitimado por quem viveu em tempos distintos, esse cansaço é real. E como todo cansaço, merece ser ouvido, não diminuído.
Talvez seja hora de parar de se exigir tanto. Porque, no fim, o que vale mais: uma vida produtiva ou uma vida vivida?